Se a curva da
procura e da oferta é uma curva, segue-se que sua expressão analítica está
errada, se for uma recta, então, o diagrama de Marshall está errado porque um
mesmo diagrama não pode ser linear e curvo sob o mesmo horizonte temporal, o
que torna-se muito mais problemático na cruz marshalliana porque ele não faz
referência ao tempo.
O leitor há-de notar que o nome “cruz marshalliana” é
bastante estranho para se atribuir ao principal diagrama da economia política. A
palavra “cruz”, malgrado não ser de invenção cristã, ela foi posta em circulação
pelo cristianismo pelo que a simples menção da cruz evoca, na mente de qualquer um e
acima de qualquer dúvida, a ideia de teologia cristã.
Num artigo passado intitulado “investimento e o mito
dos cestos de ovo”, mencionei uma série de mitos que existem na economia e
podemos acrescentar a aquela pequena lista, o mito da cruz marshalliana, o que,
também, só significa que as pessoas que deram esse nome não entenderam o que
Alfred Marshall estava tentando dizer e acabaram dando esse nome que, no final
das contas, nada mais é que expressar uma impressão como diria Benedetto
Croce.
Se o termo cruz marshalliana tivesse sido dado ao
diagrama de Marshall na idade média, ninguém se espantaria com isso porque iria
simplesmente reflectir a atmosfera teológica e filosófica daquela época. Porém,
Marshall escreveu seu princípio de economia política em 1848, o mesmo ano em
que Marx e Engel lançam seu manifesto comunista em Londres, portanto, um SÉCULO
que Gustavo Corção diria ser DO NADA.
***
O diagrama de Marshall foi desenhado no primeiro
quadrante do sistema cartesiano ortogonal. No eixo das abcissas, Marshall
colocou o preço e no eixo das ordenadas ele colocou as quantidades. Esse diagrama
chama-se cruz porque ele parece-se muito com a cruz, porém, não com a cruz
cristã que era romana, mas a cruz bizantina, salvo erro, que mais parecia o símbolo
matemático da multiplicação (X) enquanto a cruz romana-cristã se assemelha ao símbolo
matemático de adição (+), porém, com uma haste vertical mais longa que a
horizontal, enquanto a bizantina, tem duas hastes com a mesma metria.
Marshall chamou as duas hastes da sua cruz de curva de
procura e curva de oferta, respectivamente. Em alguns manuais de economia, a
cruz marshalliana aparece em formato de duas linhas rectas que se interceptam e
noutros manuais ela aparece como duas curvas de níveis que também se
interceptam.
Daqui podemos colocar a seguinte questão: a procura e
a oferta são lineares ou são curvos? Se analisarmos a coisa sob a perspectiva
das dimensões temporais de curto-prazo e longo prazo, eles serão lineares e curvos
e, é claro, não sob a mesma perspectiva temporal.
A linearidade da procura e da
oferta espelham apenas a sua tendência de longo prazo enquanto a sua curvatura
espelha a dinâmica de curto-prazo. Contudo, quando olhamos para a expressão analítica
das curvas da procura e da oferta vemos que ela não é curva mas, sim, linear pelo que
é incorrecto chamar as curvas da procura e da oferta de curvas porque longe de
serem curvas elas são linhas rectas.
Deste modo, há uma relação linear entre as quantidades
procuradas e oferecidas dos bens e serviços com o seu preço relativo, a qual
pode ser negativa ou positiva, dependendo se estamos a lidar com a procura ou
com a oferta. Essa relação linear levanta os seguintes problemas:
1.
Ela significa que
a procura e a oferta podem crescer infinitamente;
2.
Ela significa que
a oferta não está sujeita a lei dos retornos decrescentes ou custos crescentes.
Esse segundo problema que não se isola do primeiro, é
tanto mais importante porque a chamada curva da oferta tem a inclinação que tem
por causa da lei dos rendimentos marginais decrescentes que é o mesmo que a lei
dos custos marginais crescentes. Assim, se a curva da oferta não é uma curva mas,
sim, uma linha, como dada na sua expressão analítica, ela não pode ter a inclinação
positiva que tem por causa da lei dos rendimentos marginais decrescentes ou dos
custos marginais sob hipótese nenhuma.
Se a curva da procura e da oferta é uma curva,
segue-se que sua expressão analítica está errada, se for uma recta, então, o diagrama
de Marshall está errado porque um mesmo diagrama não pode ser linear e curvo
sob o mesmo horizonte temporal, o que torna-se muito mais problemático na cruz
marshalliana porque ele só faz referência ao preço e a quantidade como uma balança
de mercador e não faz referência ao tempo.
Essa a-temporalidade da cruz marshalliana, para cuja atenção
Joana Robinson havia chamado os economistas do século XX, cria muita confusão e
uma delas é essa de dizer que o diagrama de Marshall representa in totum um cenário de curto e de
longo-prazo que, por sinal, são conceitos criados pelo próprio Marshall.
Uma vez que o tempo está ausente do diagrama de
Marshall, isso significa que esse diagrama tem a pretensão de ser
supratemporal, supraespacial, suprahistórico, tentando se impor em todas as
eras como uma verdade universal e abstracta como a triangularidade do triângulo,
a quadratura do quadrado, a humanidade do ser humano e assim por diante. O problema
com isso é que o mercado como tratado por Marshall como intercessão da procura
com a oferta só pode ser tratado incomutavelmente como um objecto ideal e
não como objecto da nossa experiência porque somente um ente de razão goza da
prerrogativa da intemporalidade.
A coisa fica mais confusa ainda quando falamos que o
mercado é um lugar onde se dá a intercessão entre procura e oferta porque se é
um lugar, logo, a procura e a oferta não podem se arrogar a prerrogativa de
serem supraespaciais porque o lugar é um espaço, um espaço delimitado, o que
faz do mercado e da procura e da oferta que o define apenas mais um dentre
muitos entes espaciais, temporais e históricos, o que significa que o mesmo não
é estático como aparece no diagrama de Marshall mas, sim, dinâmico e que a
procura e a oferta de Sandwich em 2009 não é o mesmo que a procura e oferta de
Sandwich em 2017, que a procura e oferta de livros de economia na França não é
o mesmo que em Moçambique e que a procura e oferta de AK47 durante a segunda
guerra mundial não foi o mesmo que a procura e oferta de AK47 no dia da queda
do muro de Berlim.
O diagrama de Marshall não capta essas nuances. Ele apenas
capta os movimentos dos preços e das quantidades como um movimento contínuo cujo
fim, aquilo em que essa oferta e procura se tornam, pode ser antecipado com 100
por cento de chance de acerto. Ora,
uma coisa que é curva não pode oferecer esse grau de previsibilidade mas apenas
um grau de previsibilidade meramente probabilístico, o qual teria que ser
continuamente ajustado com base no método de tentativas e erros, caso contrário,
cairíamos no excesso de dogmatismo mecanicista dos modelos matemáticos.
Alguns poderão dizer
que todas essas dificuldades que eu enunciei acima e outras que surgirão no
decurso da redacção deste artigo já tinham sido acauteladas pelo próprio modelo
de Marshall por meio da hipótese de que todo o resto permanece constante (coeteris paribus). Todavia, lamento
dizer que tudo isso é falso. Explico-me:
Primeiro, manter todo o resto
constante significa reter o tempo e isso nos remete para um outro plano da
realidade que é o plano da eternidade em que a mera sucessão dos factos dá
lugar a simultaneidade. Em segundo lugar, afirmar que tudo permanece constante
excepto o preço significa levantar mais problemas porque para começo de
conversa o preço não é um ser a se,
i.e., um ser que é procedente de si mesmo, pelo contrário, o preço é explicado
por uma série de factores que o abarcam e o subordinam, de modo que você não tem como manter constante o preço
apenas sem manter constante os factores que movem o preço, by the way, mesmo se apenas o preço se mantivesse constante, essa hipótese
também seria falsa porque também há uma série de factores que são movidos pelo preço,
de modo que se este não for constante mas, sim, variável, como na cláusula coeteris paribus, tampouco serão constantes
os factores que são movidos pelo preço.
A hipótese coeteris
paribus suscita aquele problema incial a que fiz referência, digo, a
ambiguidade da própria ideia de curva da procura e da oferta que ao mesmo tempo
se expressa analiticamente por meio de equações matemáticas lineares e,
portanto, determinísticas. Ou seja, mais uma vez, se todo o resto permanece constante
e apenas o preço se move, teríamos, sim, curvas mas, já não teríamos equações lineares.
Tudo isso é tão confuso que dificilmente alguém conduziria
o mercado de modo eficaz por meio da cruz marshalliana, aliás, um mercado
dirigido já não é um mercado mas um meio mercado ou um anti-mercado ou ainda um
a-mercado que, seja como for, já foi demonstrado a impossibilidade da sua
viabilidade em 1921 por Ludwig Von Mises no seu livro “o cálculo económico no
socialismo”.
De modo que a funcionalidade de um mercado controlado
é um quadrado redondo porque se existe alguma coisa que não subiste ao mais mínimo
controlo que seja é o mercado e sendo ele a verdadeira expressão da economia
porque só existe economia de mercado, sendo o resto, uma interface entre a economia e seu inverso, a única coisa
decente que podemos fazer é procurar compreender como o mercado funciona e não nos
arrogarmos ao delírio prometeico de transformá-lo politicamente, aliás, já dizia
Aristóteles que a economia só começa quando a política termina.
ESCRITO POR|XADREQUE SOUSA|shathreksousa@gmail.com
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