terça-feira, 30 de janeiro de 2018

Craveirinha (I) “Mulata Margarida”-Comentários

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Eu tenho uma lírica poesia
Nos cinquenta escudos do meu ordenado
Que me dão quinze minutos de sinceridade
Na cama da mulata que abortou


Este poema foi escrito por José Craveirinha em Maio de 1959 e faz parte dos textos que compuseram o XIGUBO (1980).

I

Eu tenho uma lírica poesia
A expressão “lírica” é uma alusão a lira que é um instrumento musical. Esse instrumento entra na história da poesia quando os poemas deixam de ser apenas objecto de declamação e passam a ser cantados ao som de algum instrumento musical, sendo lira um dos instrumentos que tiveram um papel pioneiro nessa nova manifestação poética.

Assim, quando se fala em lírica poesia não se refere a poesia “em si mesma” o que seria apenas uma mera “maneira memorável de dizer” para usar a expressão do poeta Bruno Tolentino, mas uma maneira memorável de dizer ao som de um instrumento musical, neste caso, a lira. Ora, quando o poema é cantado transforma-se o poeta num trovador.

Nos cinquenta escudos (moeda portuguesa até sua adesão a União Europeia em que passou a usar o Euro. Não nos esqueçamos que Craveirinha escreveu esse poema em 1959, i.e., em pleno período colonial e, nessa época, o escudo era a moeda oficial da coroa portuguesa, quer em Portugal, quer nas suas colónias ultramarinas) 

do meu ordenado
Que me dão quinze minutos de sinceridade
Na cama da mulata que abortou
E pagou á parteira
Com o relógio suíço do marinheiro inglês

Por outras palavras, a Mulata Margarida era uma prostituta. Há quem, como Nelson Rodrigues, diga que a prostituição é o ofício mais antigo da mulher. Não concordo com isso, pura e simplesmente porque a prostituição não é um ofício. Economicamente, essa posição é indefensável embora haja alguns que, na senda dessa crença, defensam a legalização da prostituição como uma actividade profissional e falam até mesmo em trabalhadoras de sexo e não em prostitutas.

É incrível como nós chamamos os nossos ancestrais mais remotos de bárbaros quando os comparamos connosco hoje a despeito da quantidade industrial de coisas absurdas de que somos inventores prolíficos. É por isso que digo que se alguma vez houve uma idade das trevas esta idade é, sem sombra de dúvidas, o tempo em que vivemos. Comparada com a degradação moral, intelectual, etc., que assistimos hoje, chamar a idade média de idade das trevas chega a ser um sadismo.

 Genericamente, a prostituição não se diferencia do furto, do homicídio, da feitiçaria, etc. sendo assim, se a prostituição é defensável, também o são o furto e o homicídio, pelo menos genericamente. Nestes termos, se temos que legalizar a prostituição que legalizemos com ela igualmente o furto e o homicídio porque se chamar prostituta a uma prostituta é discriminação, segue-se analogamente, que chamar a um ladrão de ladrão também é discriminação.

O poeta diz que teve “quinze minutos de sinceridade na cama da mulata que abortou”. O poeta usa a expressão acima para se referir a relação sexual. “Quinze minutos” é usado para referir-se a brevidade não apenas do acto sexual em sim mas daquilo que as pessoas buscam no acto sexual outro que não a procriação que é o prazer. Já dizia Schopenhauer que o sexo (excitação sexual) promete tanto mas realiza muito pouco.

“Sinceridade” aqui pode nos remeter a ideia da nudez, ou seja, no acto sexual, o homem e a mulher se colocam desnudos perante o outro. O colocar-se nu perante o outro é revelar-se ao outro tal como se é. Ninguém pode negar que a roupa esconde muita coisa mas não digo a roupa tomada na sua acepção literal mas simbolicamente.

Esse simbolismo do sexo é interessante. O acto sexual simboliza a união dos opostos, a união do activo com o passivo, o yin e o yang dos chineses. Na verdade, esse simbolismo está presente em tudo. Podemos dar um exemplo de objectos naturais e da cultura que simbolizam a relação sexual:
- O sol (macho) e lua (fêmea);
- Haste vertical da cruz (macho) e haste horizontal (fêmea);
- Árvore da vida (macho) e árvore do bem e do mal (fêmea);
- Mastro do navio (macho) e o casco do navio (fêmea)
- Cristo (macho) e a igreja (fêmea), etc.

O poeta refere-se a mulata Margarida como “a mulata que abortou”. É interessante essa correlação entre prostituição e aborto. Na verdade, o mesmo movimento social que promove a legalização da prostituição promove igualmente a legalização do aborto. Era interessante que se fizesse uma análise estatística que medisse o impacto da prostituição no aborto e, sem dúvida alguma, chegaríamos a conclusão de que o impacto é significativo.

II

Mulata Margarida
Da carreira do machimbombo (expressão que designa autocarro em Moçambique) treze
De cabelo desfrisado com ferro e brilhantina
Fio de ouro com medalha (crucifixo) de um misericordioso
Deus nosso Senhor do patrão

A expressão “Deus Nosso Senhor do patrão” é usada por Craveirinha para se referir a Jesus Cristo. O ter a mulata margarida um crucifixo não significa dizer que ela fosse uma cristã católica. Digo isso por causa do que o próprio poeta diz anteriormente quando escreve que a mulata margarida pagou a parteira com o relógio suíço do marinheiro inglês. Se calhar, o crucifixo também lhe tenha sido oferecido por um dos seus “clientes”, expressão que uso para agrado dos defensores da legalização da prostituição.

Se calhar ela fosse cristã. Por que não? Em “Crime e Castigo” de Dostoievisky há uma prostituta chamada Sónia que lia a sua Bíblia todos os dias. Porém, Sónia não gosta daquela vida de prostituição (se prostitui para sustentar um pai bêbado, uma madrasta tísica e dois meios-irmãos pequeninos) da qual se envergonha bastante e consegue se libertar dela, o que não acontece com a mulata margarida.

Sabemos que Craveirinha era um ateu confesso. Diz o filósofo Mário Ferreira dos Santos que ateísmo é apenas uma má colocação do problema de Deus. Ou seja, o deus que os ateus dizem que não existe não tem nada a ver com o ser supremo, o Deus das religiões, sendo assim, há um debate assimétrico entre ateus, teístas e agnósticos.

Ao se referir a Cristo como o Deus do patrão, Craveirinha revela seu distanciamento do cristianismo. Não apenas do cristianismo mas também da religião. Ao ligar Cristo ou mais genericamente deus ao patrão, a ideia que o poeta transmite é de que deus só é deus dos fortes, dos poderosos, enfim, sua misericórdia só está ao alcance dos exploradores.

Durante muito tempo tem recaído sobre a religião principalmente sobre o cristianismo a acusação de ter sido um instrumento dos colonizadores pelo que ele deve ser combatido. Se não se pode negar que os colonizadores serviram-se da religião para levar a logro os seus intentos perniciosos, também não se pode negar que foi a religião e principalmente a cristã que mais lutou pela liberdade dos povos não apenas sob o colonialismo mas também sob o imperialismo comunista que em países que haviam banido o cristianismo como a China e a URSS levou a morte 140.000.000 de civis (cf. livro negro do comunismo, Steffen Courtois).

Podemos falar, o quanto quisermos, mal das religiões e principalmente do cristianismo mas é a ela que devemos a civilização ocidental juntamente com a filosofia grega e o direito romano. Foi a igreja que criou a assistência as mães, a universidade, hospitais públicos, promoveu a alfabetização, etc. E dizer que a igreja fez tudo isso com finalidades exploratórias não me parece razoável nem conforme a recta razão.

E tu Joaquim chofer do táxi castanho
Sabem que eu sou bom freguês
Três dias apenas depois do fim do mês

Por outras palavras, bom freguês, bom cliente é aquele que não fica comprando fiado. O poeta diz, aqui, que só conseguia sê-lo três dias depois do fim do mês. Para onde ia seu dinheiro? Para a prostituição. Daqui podemos tirar a a lição seguinte: aquele se entrega ao vício da prostituição acaba empobrecendo. A pobreza não somente afecta as finanças do pobre mas atrai sobre ele estigma que o faz ser rejeitado por todos porque sabem que ele não tem dinheiro.

III

E corpo moreno de mulata Margarida
É vestido de nailon que senhor da cantina pagou
É quinhenta de chá
Arroz e molho de amendoim
De Zeca macubana que herdou olhos azuis
Das românticas noites
De jazz
Nos bares da rua Araújo

A rua Araújo se localiza na cidade de Maputo. É incrível que até hoje, a rua Araújo é sinónimo de prostituição. Não somente é sinónimo, mas, lá, pratica-se a mais desenfreada prostituição sob o olhar impávido e sereno de todo mundo.

“Bares da rua Araújo” é uma expressão interessante. Era interessante que também se fizesse um estudo estatístico para medir a correlação entre o consumo de álcool e a prostituição. Que há uma correlação entre álcool e sexo é arqui-sabido. Contudo, nem todos que frequentam a rua Araújo o fazem em estado alterado de consciência, ou seja, sob efeito de álcool.

Num mundo em que as ideologias feministas têm transformado as relações entre homem e mulher num inferno dantesco ao alcance de todos, os homens encontram a sua “salvação”, por enquanto, na prostituição, na masturbação e nessa onda homossexual que apanhou os legisladores de todo mundo de calças na mão. Infelizmente, assim caminha a modernidade com seu cortejo de despudor suicida até mais não poder.

Enquanto a cinta elástica suspende
O ovário descaído

Sabemos que a cinta não pode suspender o ovário. Assim, o poeta usa a palavra cinta no lugar de sutiã e ovário no lugar das mamas. É uma interpretação e pode haver outras. Uma outra interpretação seria dizer que o poeta refere-se denotativamente ao ovário, um ovário cansado de tanto abortar, porém, são interpretações que precisam de ser aprofundadas.

IV

E eu sei poesia
Quando levo comigo a pureza
Da mulata margarida
Na sua décima quinta blenorragia.

A expressão “e eu sei poesia” só mostra que todo homem diante de uma mulher é um poeta. Não me refiro a um poeta profissional que seria aquele que não apenas tem o talento para a poesia mas que também, como dizia T.S.Elliot, tem a tradição literária. A palavra homem em sânscrito quer dizer aquele que valora e a poesia é uma criação de valores estéticos.

Quando um homem diz para uma mulher que os olhos dela são duas estrelas brilhando no rebordo do universo, ele está expressando uma impressão. Infelizmente, muitos dizem isso porque leram em algum livro de poesia de modo que o que eles dizem não expressa uma impressão real mas é uma poesia de segunda mão, é inautêntico.

O poeta fala da “pureza da mulata margarida”. Como é que uma prostituta com ovário descaído e blenorrágica pode ser pura? Podemos interpretar essa pureza como uma DTS que o poeta contraiu. É fácil perceber que o poeta está usando de ironia, o que literalmente significaria dizer que a prostituta é uma impura e aqui entramos num campo de estudo que pertence a moral.


Não se pode dissociar a poesia da moral. A poesia vem de poesis que quer dizer fazer, agir. E a moral pertence a aquela esfera que dizemos ser própria da acção humana, que é a esfera do axioantropológico, que é aquela esfera cujo valor é o afanar-se ao certo e o afastar-se do errado de modo que um poema pode ser conveniente ou inconveniente, um poema amoral é tão impossível quanto um quadrado redondo.

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