segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Os anjos de Deus são brancos até hoje, entrevista a Paulina Chiziane

ESCRITO POR | XADREQUE SOUSA | shathreksousa@gmail.com

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Na sua obra aparecem personagens de diferentes classes socias e diferentes cores de pele. O Alegre Canto da Perdiz é exemplar neste sentido. Qual era a imagem estereotípica dos portugueses no tempo colonial e como mudou esta imagem desde então?
São várias imagens. O povo olha para o português como alguém superior, no sentido de ter acesso a conhecimento científico e a outras formas do saber. Depois há a imagem do opressor. Há um medo terrível dos portugueses. A repressão colonial foi muito dura. Há medo sobretudo nos mais velhos. Por exemplo, nos livros de escola, quando eu estudei no tempo colonial, o branco era representado com chapéu, roupa de safari e uma arma, todo orgulhoso. E o negro era representado com uma saia de peles, sempre uma imagem caricata. Não me lembro de ter visto imagens bonitas de africanos nos livros do tempo colonial. Os indivíduos da raça negra eram sempre retratados de maneira a demostrar inferioridade. E quando se fala do confronto entre raças há ainda uma imagem que circula, dos pretos à volta de uma fogueira, e um grande pote com um branco de chapéu e uma arma lá dentro para mostrar que os negros eram canibais.
Tenho hoje 59 anos, quando a independência aconteceu eu tinha 19. E até aos 15 ou 16 anos eu convivia com estas imagens. Sobretudo nas pessoas da minha geração e das mais velhas existem estas quatro imagens típicas. Frequentei uma escola primária católica e, quando comecei a ir à igreja, Deus era branco e o diabo era preto. Com o tempo isso foi desaparecendo, mas ao mesmo tempo continua. Os anjos de Deus são brancos até hoje, anjos pretos ainda não há.

MEUS COMENTÁRIOS:
As cores tiveram sempre duplo sentido: o sentido literal e o sentido simbólico. O sentido literal é como a cor nos é dada pelos sentidos como, por exemplo, quando dizemos chá verde, chapéu castanho, etc. O sentido simbólico ocorre quando tomamos esses dados captados pelos sentidos para representar algo que não pode ser captado pelos sentidos, algo que percebemos na nossa alma como por exemplo, quando tomamos a cor branca como símbolo da paz, a cor vermelha como símbolo da vida, a lua como símbolo da Mulher e o sol como símbolo do homem, se bem que isso já não seja propriamente simbólico mas sim alegórico.

Representar anjos de Deus com a cor branca não significa que literalmente os anjos de Deus sejam brancos porque isso seria contraditório com o próprio conceito de anjos porque sendo os anjos, em stricto sensus, seres espirituais, eles podem se apresentar com qualquer cor que eles desejarem. E mesmo que eu visse numa visão beatífica um anjo de cor azul, de vestidos vermelhos, de olhos amarelos e assim por diante, isso não significaria que aquelas cores são literalmente azul, vermelho, amarelo, etc. De modo algum. Elas devem sempre ser entendidas simbolicamente porque a visão, telestata em grego, nunca é óptica mas sim onírica por isso que um vê e outro não vê malgrado estar situados no mesmo lugar geográfico.

Portanto, ver racismo no facto dos anjos de Deus serem representados pela cor branca é ter uma visão estereotipada e pueril da realidade. É não entender a fronteira do literal e do simbólico. E pior ainda, imputar essa tendência apenas ao homem branco quando, na verdade, os símbolos, salvo um e outro acidente, são sempre universais, estando mesmo ao nível da mathese como dispositivos ao alcance da humanidade para aplanar as suas diferenças e elevar as suas semelhanças.

O problema da Paulina e de muitos neste baixo mundo é o de pensar por meio de chavões, topos (lugar-comuns) e slogans, se é que se pode chamar a isso pensar porque se pensar como dizia Hannah Arendt, desde Sócrates até Platão significava travar um diálogo silencioso consigo mesmo, como no monologium de Sto Anselom, então, sucederia que o indivíduo pensante sairia do literal para o simbólico, do óptico para o onírico quase que instintivamente e não ficaria por aí vendo vendo racismo, machismo, exploração do homem pelo homem, etc., onde não há a mais mínima possibilidade de que isso exista.


Que opina dos portugueses recém-chegados a Moçambique por causa da crise em Portugal? São bem-vindos?
É uma relação de desconfiança. Estamos juntos, mas ninguém sabe o que é que o outro vai fazer. Portanto, os portugueses que regressam não tiveram o convívio com a linguagem de libertação moçambicana nem com o processo. Muitos voltam ainda com pensamentos antigos. São poucos os que vêm de mente aberta. E o povo reage com desconfiança.
MEUS COMENTÁRIOS:
Paulina reage com desconfiança à presença dos portugueses em Moçambique e diz que o povo é que está reagindo com desconfiança. Fez-se algum plebiscito a respeito? Nada. Montou-se alguma enquete de algum tipo junto ao povo para saber qual a sua opinião sobre essa matéria? Nada. Quer dizer, Paulina diz “o povo” porque isso cria em torno do que ela está dizendo uma mística de verdade quando, na verdade, é apenas a opinião dela e ela julga que essa opinião é representativa em relação a opinião de 25 milhões de moçambicanos.
Neste momento, os portugueses são o último país da Europa que se pode olhar com desconfiança no tocante a possibilidade de colonização ou recolonização. Temos um risco de colonização? Sim, mas não vêm de Portugal, mas da China. Se em última instância, a economia acaba ditando a política, a moral, as leis, a cultura, etc., como dizia Marx, é no mínimo razoável admitir que tendo a China um peso muito grande sobre a estrutura da economia do país que amanhã ou depois, a China terá em suas mãos às rédeas da nossa política, cultural, leis, moral, etc., se é que ainda não as têm.
Na época colonial existia a classe dos assimilados, que abdicavam da cultura africana para obter um bilhete de identidade e uma série de privilégios. Hoje em dia, os filhos desses assimilados ainda formam uma classe social específica ou esta questão já não se coloca?
Tem alguma coisa a ver. Os filhos dos assimilados são aqueles que tiveram acesso ao ensino. Mesmo no tempo colonial, as poucas pessoas que tiveram formação em enfermagem, que trabalharam nos serviços públicos básicos, e os pouquíssimos médicos que apareceram, são filhos de assimilados. E a independência precisou de pessoas com um novo saber. Então, são os filhos dos assimilados que assumiram a maior parte dos cargos públicos de poder. Mas há também um grosso da população que saiu do vazio e que foi estudando, por isso hoje esta questão está um pouco diluída, mas é visível ainda. O comportamento de um filho de um assimilado é diferente do comportamento de filhos de uma pessoa comum.
MEUS COMENTÁRIOS:
Nem todos os que tiveram acesso ao ensino e que tiveram formação em enfermagem eram filhos dos assimilados. O caso de Samora Machel foi disso um exemplo e tantos outros casos que eu mesmo conheço de pais de amigos meus e do meu próprio pai que não era filho de nenhum assimilado mas que nem por isso deixou de ter acesso ao ensino.
Agora, é um pouco anacrónico falar de comportamento de filhos de assimilados na história presente de Moçambique volvidos todas essas décadas. Há outras diferenças que estratificam as pessoas em classes em Moçambique e não necessariamente o ser descendente de assimilado uma vez que uma nova casta social se constituiu no país quer por via da educação, quer por via da política, quer por via do domínio do mercado.
E os mestiços estão na mesma posição social que os assimilados ou é outra classe social?
É outra classe ainda. E por mim deveria haver este tipo de estudos. Enquanto os negros lutavam pela independência, os mulatos ficaram numa situação não muito clara, porque eles tinham o privilégio dos pais, por isso para eles não fazia muita diferença a independência. Era uma situação difícil e continua a ser.
MEUS COMENTÁRIOS:
Paulina mente com quantos dentes tem na boca. Não é verdade que os negros lutaram sozinhos pela independência do país enquanto os mulatos procuravam definir a sua situação. Isso é uma falsificação histórica histriónica que deve ser rejeitada in limine.
Pois diga-me, Sra. Paulina, Marcelino dos Santos é negro ou mulato? Jorge Rebelo é negro ou mulato? Só para citar alguns exemplos que já bastam para impugnar a tese de que os mulatos ficaram indiferentes a luta pela independência porque eram filhos dos assimilados como se não houvesse também negros assimilados em Moçambique naquela época.
Fora os mulatos que pegaram em arma, há os que fizeram muito pela independência sem terem pegos em armas como José Craveirinha e Noémia de Sousa, os dois maiores poetas que este país ingrato já teve o privilégio de ver nascer. Ingrato sim, sobretudo quando aparecem pessoas sem nenhum conhecimento histórico profundo a dar show de lamentável inépcia histórica a mais não poder, negando o contributo dos mulatos no processo de luta de libertação nacional e negando, igualmente, seu contributo no processo de construção do Moçambique pós-independência.
Vou falar da Zambézia, a província com maior miscigenação. Ali foi onde eu aprendi que o mestiço ou o mulato é um individuo sempre numa situação de desconforto, sempre à busca de uma identidade. Quando está com os negros, é tratado de uma maneira; quando está como os brancos, é tratado de outra maneira. Ele sozinho tem de criar o seu próprio mundo. Criam-se assim grupos de mestiços. Há casos de filhos de negras com brancos que se dissociam da mãe negra e se juntam ao seu grupo mestiço. A maior parte dessas pessoas mestiças nasce de uma violação ou de uma relação adúltera, nunca de uma relação socialmente aceitável. Isso, perante os brancos, cria uma certa discriminação, e perante os negros também.
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Quando a Paulina diz que “a maior parte dessas pessoas mestiças nasce de uma violação ou de uma relação adúltera, nunca de uma relação socialmente aceitável”, não é isto ofensivo, mormente porque ela não apresenta nenhuma fonte, nenhum estudo publicado, nenhum dado estatístico que aponte para isso? Não é isto delito de opinião.
No meu modesto entender, numa escala de um à cem por cento, maioria significa mais de 50 por cento. Por outras palavras, segundo Paulina Chiziane, no mínimo, 1 em cada 2 mulatos é filho ilegítimo. E ela vai mais além no seu show de racismo histriónico ao dizer que os mulatos são discriminados por serem filhos ilegítimos como se todos os negros e todos os brancos que existem cá no país e no mundo inteiro fossem filhos legítimos.
Ora, mesmo que os mulatos fossem, na sua maioria, filhos ilegítimos como pretende Chiziane, a discriminação que os mulatos sofrem neste país não seria de ordem racial mas apenas moral como a que sofrem os doentes de HIV/SIDA, mas acontece que essa Sra. é incapaz de fazer esse raciocínio tão elementar.
O mulato é um indivíduo que vive um dilema de identidade. Na Zambézia, como são muitos, começam a criar a sua própria identidade. Mas sempre oscila entre o preto e o branco. É muito fácil ver isso na Zambézia, aqui em Maputo nem tanto. Às vezes um mulato quando está diante de um branco julga-se branco, mas quando está necessitado já se sente filho de um negro. Quando está ao lado dos brancos, sente-se inferior, mas sente que está ao lado do poder. Nunca houve estudos sobre a mestiçagem em Moçambique, mas eu acho que valeria a pena. A identidade é totalmente influenciada por estes dois polos, preto e branco. Hoje qual a identidade de um mulato? Está a puxar mais para cima ou mais para baixo? De uma maneira geral em Moçambique, a situação dos mulatos é muito complicada. Está acima do negro. 
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Não é somente o mulato que padece de crise de identidade, os brancos, os negros, os vermelhos, os castanhos, os amarelos, os azuis, os violetas, etc., etc., todos padecem de crise de identidade.
Se há mulatos que ora se comportam como brancos e ora se comportam como negros, também há negros que ora se comportam como mulatos e negros que se comportam como brancos e também há brancos que se comportam como negros e os que se comportam como mulatos.
E vou mais longe ainda, há homens que se comportam como mulheres e mulheres que se comportam como homens. Há ricos que se comportam como pobres e pobres que se comportam como ricos. Há pecadores que se comportam como santos e santos que se comportam como pecadores e assim por diante. E isso existe em todo mundo, não somente na Zambézia.
Outra coisa, a identidade não está na sua cor da pele, não está na sua classe social, não está na sua língua, etc. Tudo isso são acidentes e não a essência identitária do Ente. Identidade, igualdade por definição, é você ser o que você é desde a sua constituição mais íntima, independentemente de todo e qualquer acidente racial, linguístico, etc. Agora, ninguém consegue ser inteiro desde a constituição mais profunda do seu ser porque quer os nossos pensamentos, quer as nossas palavras, quer as nossas acções estão cobertas por inúmeras camadas de elementos estranhos vindos de fora e que não são “Eu”.
Existe aquela famosa pergunta de Ramana Maharshi: “Quem sou?” Nem todo mundo sabe quem é e, muitas vezes, as pessoas morrem sem nunca ter encontrado seu verdadeiro eu, quer dizer, elas passam pela vida como meros actores, estavam a representar um personagem apenas, estavam vivendo de forma meramente artística e não de forma real e nem se aperceberam disso, o que é muito pior que representar um personagem como Hamlet, Otelo, etc., conscientemente.
No teatro, o actor sabe que aquilo é somente uma peça e que depois ele poderá voltar para a realidade, mas o indivíduo que não tem autoconsciência, no sentido de não ter consciência de si mesmo, é como se ele estivesse representando um personagem e se esquecesse disso e começasse a achar que aquilo é a própria realidade. Quando um indivíduo chega a esse ponto é porque ele neurotizou como disse o psicólogo J. C. Muller quando ele definiu neurose como uma mentira esquecida na qual você ainda acredita.
E uma das grandes mentiras esquecidas na qual as pessoas ainda acreditam é o tal do “Eu colectivo”. Quando você começa a transformar a opinião do grupo em sua opinião sem que ela tenha passado pelo filtro de sua inteligência, quando você começa a endossar as atitudes, as reacções, o linguajar grupal, etc., é porque você já neurotizou, você já não consegue atinar com a fronteira entre o seu teatro mental colectivo do seu grupo de referência e a realidade do seu próprio eu.

Portanto, o problema do mulato não está na cor da sua pele mas sim nos nossos olhos. Temos que educar os nossos olhos para verem o que estão vendo ao invés de ficarmos ouvindo os outros dizerem o que supostamente estamos vendo. Já dizia Grouxo Max: “você vai acreditar em mim ou nos seus próprios olhos?” Agora, educar os nossos olhos significa antes de tudo educar a nossa imaginação. E como se faz isso? Por meio da literatura. Sendo a literatura um dos elementos chaves da alta cultura, a mera discriminação baseada em acidentes como cor da pele, sexo, idade, etc., somente atesta a nossa falta de vida interior. Somente um povo sem identidade espiritual nenhuma se apega a aspectos meramente acidentais  do acontecer humano como se esses fossem o fundamento mesmo da realidade.
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Em O Alegre Canto da Perdiz, Delfina deseja engravidar de um branco para ter filhos mulatos,objetivo que de fato consegue. Depois discrimina os seus filhos negros e dá preferência aos seus filhos mulatos. Hoje em dia ainda há mulheres que pensam e agem desta maneira?
A descolonização é um processo longo. Leva muito tempo. E hoje, neste país independente, as mulheres negras casadas com brancos, apesar de viverem uma situação de discriminação, são economicamente mais estáveis. A situação continua. Eu escrevi O Alegre Canto da Perdiz na Zambézia por uma razão muito simples. Eu tinha uma vizinha que era mulata ou mestiça (eu não diferencio estes termos). E havia uma mulher que varria e cozinhava na casa dela. Eu pensei que fosse empregada doméstica. Vim a saber pouco depois que não era empregada, mas irmã. E quem dava ordens na casa para as coisas funcionarem era a mãe, a mãe da mulata e da preta. A mulata quando volta deve ter a comida sempre pronta, a casa sempre limpa porque a filha negra tem de fazer este trabalho. Criei assim uma relação com a família. E a senhora preta, a mãe das duas, dizia: “Eu estou bem, tenho boas casas que o meu marido deixou, o meu marido branco. Tenho uma boa situação financeira, por causa do pai desta. Agora o pai da outra, o que é que me deu? Nada. Consigo comer e educar os filhos graças ao dinheiro que recebo do pai desta.” Portanto é a mãe que fica no meio que faz a distinção rácica. A mãe negra consegue ser mais racista do que os próprios filhos. Eu conheci esta família no ano 2001 quando fui para a Zambézia trabalhar. Para mim foi surpreendente porque até àquela altura eu considerava o racismo como defeito do branco, mas o racismo também pode ser promovido por um negro. Definitivamente, o que nós chamamos racismo não é mais do que a busca de melhores condições de vida.
Se houvesse igualdade no homem preto e no homem branco, esta mulher já não agiria desta maneira e não trataria os filhos assim. Nas províncias de Zambézia e Nampula, encontramos vários casos destes até hoje. Aqui em Maputo não é muito visível, é muito difuso, mas há. Mulher casada com branco da Ásia, África do Sul com assistência médica em outro lugar, com carro, tem acesso aos benefícios do marido.

MEUS COMENTÁRIOS:
Não pode ser que “Definitivamente, o que nós chamamos racismo não é mais do que a busca de melhores condições de vida”. Não nego que haja mulheres negras que tenham casado com homens brancos na esperança de melhorar suas condições de vida e eu mesmo conheço casos assim, mas a recíproca não é verdadeira. Por outras palavras, nem todo empenho no sentido de gerar melhoria de condições de vida é racismo caso contrário assim que as pessoas melhorassem suas condições de vida elas deveriam deixar de ser racistas o que não acontece porque podemos presenciar actos manifestamente racistas vindo de homens negros e de mulheres negras que não devem nada aos brancos e vice-versa.

De modo geral, na nossa época pós-colonial, catalogamosos antigos colonizadores como os culpados e os colonizados como vítimas. Mas em O Alegre Canto da Perdiz, os negros não são retratados como puras vítimas do sistema colonial, mas também como autores de violência e injustiça. Aparentemente esta distinção entre culpados e vítimas não é tão simples.
Não, não é tão simples.O projeto colonial para se desenvolver precisou de ajuda dos negros. E os negros fizeram a sua parte. (Não estou muito bem familiarizada com a história de Moçambique e da África. Não posso mencionar nem dados nem épocas exatos). Um dos maiores esclavagistas de Moçambique vivia na província de Niassa e era negro, o rei Mataca.1 Ele depois tornou-se muçulmano e teve cerca de trezentas mulheres. Hoje, se fores à província de Niassa, que é uma província enorme (diz-se que tem a extensão de toda a França), podes andar cem quilómetros e não encontras ninguém. E eu procurei saber porquê. O que aconteceu foi realmente o movimento esclavagista liderado por este rei, que armou todos os soldados e pôs-se a vender a sua população. Há uns que fogem para não serem apanhados, uns são apanhados, e uma província inteira ficou despovoada. Não foram os portugueses que fizeram isto. Este homem era muito poderoso. Ele vendia os escravos aos ingleses, aos holandeses, aos portugueses… Estabeleceu-se como um grande esclavagista. Na província de Nampula também tivemos um caso, não sei o nome dele mas foi um individuo conhecido como um dos maiores esclavagistas. Estes processos têm os dois lados.

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De facto a nossa história pregressa tem dois momentos, nomeadamente: um primeiro momento caracterizado pela cooperação dos líderes africanos e um segundo momento caracterizado pela resistência. Podemos até admitir por hipótese que os líderes africanos cooperaram naquele primeiro momento porque a resistência lhes era impossível mas talvez essa perspectiva seja por demais banalizadora do terrível acto de traição que eles cometeram porque, se calhar, houvesse algo entre cooperação e resistência como diz Hannah Arendt.
As personagens do romance O Alegre Canto da Perdiz referem-se à Zambézia e aos Montes Namuli como o berço da humanidade e, por conseguinte, como o ponto de referência da sua identidade. Parece-me que ainda não têm uma noção da “moçambicanidade”, de uma possível identidade nacional moçambicana, só de uma identidade regional, zambeziana. Acha que hoje em dia há uma identidade cultural moçambicana?
Eu acho que existe. Nós estamos num espaço geográfico desenhado artificialmente e temos um elo comum, a história da escravatura, a colonização feita pelos portugueses, falamos a mesma língua nacional, estamos comunicados. E essas guerras que houve, tanto a guerra da libertação nacional como a guerra civil, tiveram coisas muito más, mas também coisas muito boas, como esta mistura entre as culturas. Houve sempre um movimento de norte a sul e hoje a gente vai a qualquer canto do País e encontramos gente de todas as origens. As pessoas começam a conviver juntas. E isso para mim é o início do processo de construção de uma identidade que levará talvez mil anos, ou menos. É um processo muito longo.
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É muito forçado falarmos em identidade nacional em Moçambique. Territorialmente, as regiões do país não são idênticas, as línguas não são idênticas, as culturas não são idênticas. Se percorrermos o país de norte a sul e vice-versa, a impressão com que ficaremos é de que percorremos três países distintos e não três regiões de um mesmo país.
Neste sentido é que eu digo que falar em identidade nacional moçambicana é muito forçado se quisermos olhar a coisa sob a perspectiva territorial, linguística, cultural, etc. Ora, se não podemos falar em identidade nacional dos moçambicanos nesse sentido, em que sentido é que podemos fazê-lo? Podemos fazê-lo no sentido normativo ou legal por meio da constituição da república. Ou seja, num país com a diversidade territorial, linguística, cultural, etc., de moçambique, a constituição da república deveria ser um elemento unificador e portanto ter um carácter sagrado como acontece, por exemplo, com a constituição norte americana. Mas o que acontece por aqui é que trocamos de constituição com a mesma frequência com que trocamos de cueca, aliás, trocamos mais de constituição do que trocamos de cueca. Porque? Porque a nossa constituição não se baseia em princípios universais e eternos mas sim na moda do momento. Explico-me: quando o comunismo marxista-leninista estava na moda, a nossa constituição era comunista. Quando o comunismo saiu de moda e a democracia entrou na moda, jogamos na lata de lixo a antiga constituição comunista e fizemos uma outra mais democrática (?)
É claro que fazer da constituição da república o símbolo aglutinador da nação não significa jogar os elementos culturais no lixo e ficar apenas com o aspecto normativo da coisa como se quiséssemos fazer um purismo identitário como na pretensão de Hans Kelsen de fazer uma teoria pura do direito. De modo nenhum. Eu me refiro antes pelo contrário a necessidade de, partindo da perspectiva de Miguel Real da tridimensionalidade do direito, arbitrar dialecticamente os aspectos normativos, culturais e naturais do povo moçambicano de modo a se extrair disso princípios universais e auto-probantes que sirvam de fundamento para a dedução da racionalidade moçambicana.
Então as guerras tiveram o efeito positivo de os moçambicanos se ficarem a conhecer por causa das migrações forçadas…
Exatamente.
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Isso nem merece comentário, somente desprezo!...
Em Niketche apercebe-se muito bem que o Sul de Moçambique é marcado por estruturas patriarcais e o Norte por matriarcais. Em que medida as estruturas patriarcais, que são muito mais poderosas a nível global, se sobrepõem às matriarcais?
A cultura patriarcal mais forte é o islamismo e por isso está muito presente no Norte de Moçambique. Ali o matriarcado não sobrevive. Depois, o Estado tem leis patriarcais herdadas de um sistema europeu judaico-cristão. Outro fator é que em Moçambique as grandes lideranças vêm do Sul que é tradicionalmente patriarcal por excelência. Estas pequenas comunidades matriarcais estão a correr risco de desaparecimento. Ainda se encontra o modelo perfeito do matriarcado, mas é raro. Todos eles estão a ser penetrados pelo islamismo, pelo Estado, pelo cristianismo e pelas culturas do Sul. Como se trata de poder, os homens seguram-se a isso e dominam.
MEUS COMENTÁRIOS:
O que? A cultura patriarcal está muito presente no Norte de Moçambique? O matriarcado não sobrevive no norte de Moçambique? Faz favor, porra! Eu não acredito que estou comentando isso, meu Deus do céu!
Outra coisa, só o patriarcado é que se trata de poder e o matriarcado não? Que brincadeira é essa? Veja, segundo o filósofo Olavo de Carvalho, poder é possibilidade concreta de acção. No patriarcado, os patriarcas tem mais possibilidade concreta de acção que qualquer outro fulano porque eles é que tem os meios de acção. No matriarcado, idem.
Historicamente, pelo menos no que concerne ao caso de Moçambique, quer no norte, quer no sul do país, essa relação de autoridade e subordinação não é natural mas sim resultado de factores económicos. Por outras palavras, o papel provedor da mulher no norte deu-lhe esse papel de destaque sobre o homem e no sul o papel de provedor do homem deu-lhe esse destaque. Aparentemente é isso!
Todavia, volvidos muitos séculos e até milénios, temos hoje, não somente nas europas mas também cá por estas bandas pelo menos ao nível das cidades uma situação em que as mulheres conseguem prover por si próprias as suas necessidades e os homens, idem, entretanto, ao invés da materialização da tão sonhada igualdade de género, o homem continua tendo autoridade sobre a mulher e sobre os filhos. Por que será? Primeiro, a explicação da origem do patriarcado com base na hipótese de que nessas regiões onde o patriarcado se impôs o homem era o provedor está errada porque até mesmo nas regiões onde impera o matriarcado os homens nunca perderam a sua autoridade malgrado as mulheres serem provedoras.
O que eu quero dizer é que a autoridade do homem não deriva do facto dele ser provedor, mas sim do facto dele ser o protector. Em qualquer situação de guerra você vê quem tem autoridade sobre o outro, se é a população civil ou se são os militares. É claro que são os militares. E no nosso dia-a-dia, a nossa relação com os policiais atesta isso. Quer dizer, qualquer pessoa que vai protegê-lo tem que ter autoridade sobre você.
Não se trata de machismo. Não se trata de opressão, caso contrário autoridade não seria autoridade. Veja, autoridade quer dizer poder delegado e não poder usurpado ou poder tomado à força. E hoje em dia com o feminismo está acontecendo um fenómeno muito estranho o qual foi descrito por G.K. Chesterton, i.e., o fenómeno das mulheres preterirem a autoridade dos maridos para estarem sob a autoridade do Estado. Agora, o que é o Estado? O estado é um grupo de pessoas anónimas e mal-intencionadas. Quer dizer, é aquilo que se diz no nordeste brasileiro: saída de leão e chegada de cão.
Na semana passada falei, em Pemba, com um homem de negócios do Quénia. Ele viaja regularmente entre o Quénia e Moçambique e disse-me: “As mulheres macua são muito agressivas.” Tive a impressão de que ele se sentia de certa forma ameaçado pelas estruturas matriarcais.
Os homens não estão preparados. Uma mulher macua, quando não está satisfeita na cama, ela reage. E a comunidade à volta dá-lhe razão porque ela tem direito ao amor e ao sexo. Toda esta gente do patriarcado não entende isto. Essa para mim foi a marca mais forte. O desejo mais profundo de uma mulher do matriarcado é respeitado, por exemplo quando ela diz: “Eu gosto de ti, eu quero casar contigo.” A mulher vai à guerra, vai buscar um homem, enquanto que no patriarcado a mulher tem de esperar que apareça um qualquer.
Eu sou do Sul. A educação que tive aqui é esta: uma mulher não pode dizer o que pensa ou o que sente, tem de obedecer a tudo o que o homem faz. As macuas não. Elas existem, elas reivindicam. Deve ser esta questão que o queniano sentiu.
MEUS COMENTÁRIOS:
Eu comento essa questão do amor mais adiante pelo que não vou me repetir aqui. Mas quero deixar uma nota: pelo que vejo, o tipo ideal de mulher para Paulina, ou o que uma mulher tem que ser para Paulina é aquilo que o poeta francês Charles Baudelaire chamou de mulher fálica. Esse tipo de mulher está muito bem retratado no romance de Charles Flaubert, com o título “Madame Bouvarie”, um clássico da literatura francesa e universal.
Não há nenhum fenómeno social que não esteja retratado na literatura. Na verdade, a literatura é isso, uma matriz de vidas possíveis. Para quem leu o romance de Flaubert sabe como é que Emma Bouvarie, a madame Bouvarie terminou. Você pode dizer: mas isso é só ficção e nunca vai acontecer. Veja, a função da literatura é educar o nosso imaginário mas não educar por educar, mas sim educar o nosso imaginário para ampliar nossa possibilidade de vida. Já dizia o filósofo judeu Moisés Maimónides que tudo que nós imaginamos é possível.
Quando Flaubert escreveu Madame Bauvarie foi um escândalo. Aquele tipo de mulher não existia na europa do seculo XIX, mas agora, volvidos três seculos, com o advento do movimento feminista internacional você encontra uma Emma Bouvarie em cada esquina. Quer dizer, o que ontem era ficção, se tornou a realidade mais banal dos nossos dias.
Em certo sentido a cultura macua é muito moderna. No meu país, na Alemanha, as mulheres hoje têm pleno direito a exigir o seu prazer sexual, mas isto só aconteceu depois de muitos anos de luta feminista…
A outra questão importante é o próprio processo de colonização. A colonização portuguesa considerou os povos africanos sem cultura. Quiseram impor a sua própria cultura julgando-a superior. Mas entre os povos africanos já havia estes casos muito avançados.
MEUS COMENTÁRIOS
Existe uma cultura superior a outra? Sem dúvida alguma. Uma cultura fundada em valores universais e eternos é superior a todas as culturas fundadas em valores particulares e transitórios. Por exemplo, pode-se dizer, neste sentido, que a cultura dos judeus é superior a cultura dos Mayas e dos Aztecas e a prova é que uma permanece até aos nossos dias, a dos judeus porque fundada em valores universais e outras, a dos mayas e aztecas desapareceram porque fundada em valores particulares e efémeros.
A outra face da questão é que Paulina nega a superioridade da cultura europeia sobre a cultura africana sob o pretexto de que em África já existiam mulheres que reivindicavam seus direitos sexuais como acontece na europa pós-moderna com o advento do movimento feminista. Mas não é o feminismo que torna a cultura europeia superior a cultura africana, muito pelo contrário, o feminismo é um elemento estranho à cultura europeia e somente contribui para a destruição dessa mesma cultura conforme amplamente defendido por Marx e Engels. É só ir ler o manifesto comunista que está tudo lá.
Mais uma vez, o que é cultura europeia? É um sistema que combina os valores morais tradicionais judaico-cristãos com a liberdade de mercado. Agora, Paulina e essa sua entrevistadora confundem tudo, se por inépcia ou por pura maldade não sei, mas você dizer que o feminismo é cultura é o cúmulo de inépcia intelectual, quer dizer, você não sabe distinguir um valor de um anti-valor. Não obstante, chega a ser um delito de opinião você confundir a cultura europeia com feminismo porque se a cultura europeia se respalda nos valores tradicionais judaico-cristãos, segue-se que o feminismo não passa de joio no meio do trigo.
Às vezes digo: nós abraçámos o cristianismo e muitos valores do colonialismo cegamente. Hoje estamos em busca de um paraíso que já tínhamos e perdemos. Por exemplo, mesmo na nossa região bantu do Sul, onde o homem é muito poderoso, uma mulher quando se casa vai viver para casa do marido, mas nunca perde o seu nome e a sua identidade. No cristianismo não, a mulher casa e tem de adotar o nome do marido. E a justificação é que ela, como entidade individual, traz uma história e a proteção dos seus antepassados. Se ela perder o nome da sua própria família, vai perder a proteção dos antepassados e a família não será feliz.
MEUS COMENTÁRIOS:
Quer dizer, por um lado, Paulina critica as formas tradicionais de família porque são patriarcais e opressivas. Por outro lado, quando se trata de atacar a cultura ocidental ela toma partido desses mesmos sistemas patriarcais e opressores. Ora, assim não dá, ou você é a favor ou você é contra. Agora ficar fazendo esse jogo duplo, ora, quem não sabe que isso a bilingue maledictus é coisa do diabo, o pai da mentira sistematizada, que é o que Paulina faz, se calhar, na vã esperança de que alguma dessas mentiras se tornem verdade como naquela famigerada técnica de Goebells da mentira repetida que se torna verdade, mas acontece que a mentira nunca se torna verdade, o mínimo que pode vir a acontecer aí é você se tornar num neurótico.
Paulina acusa o cristianismo de irracionalismo e, no entanto, volta e meia pretende ela que se uma mulher receber ou adoptar o nome do marido ela vai perder a protecção dos antepassados e a família não será feliz. Não obstante essa inépcia intelectual, ela pretende que os africanos já tinham Deus antes dos europeus desembarcarem nesse baixo mundo. Por ventura, pretende Paulina que Deus seja os espíritos dos antepassados? Não saberá ela que um deus que tem antepassado por definição não pode ser Deus? Por ventura, não percebe ela que apelar para a protecção dos antepassados é prática de feitiçaria e que não é próprio de pessoas cultas, as quais são guiadas pela razão iluminante e não pelos poderes pseudo-divinos de um demiurgo mefistofélico travestido de ancestralidade?
Se Paulina não sabe, eu, pois, digo-lhe o que é cultura: “cultura é um sistema de valores em torno do qual se constrói o imaginário colectivo de um povo”(sic). Então, cultura está para valorizar o homem, para elevá-lo. Neste sentido, nem todo hábito ou costumes elevam o homem. Nem todo o hábito ou costume cultivam o homem, o tornam culto. Por outras palavras, o conceito antropológico de cultura é muito limitado.
O curandeirismo ou a feitiçaria longe de elevar o homem aos patamares mais altos da intelectualidade, da espiritualidade, o fazem descer as profundezas, aos abismos mais escuros da ignorância, da animalidade, tornando o homem um parente próximo dos demónios ao invés de parente próximo das consciências angélicas e imagem e semelhança do criador.
De acordo com a nossa tradição bantu, uma mulher deve ser tratada pelo nome dos seus antepassados. Vieram os portugueses e disseram que isso era atrasado. E os assimilados absorveram este pensamento religioso como valor. Hoje as mulheres moçambicanas exigem direitos de coisas que já tinham e perderam por receber um sistema sem analisar em profundidade as coisas. Claro, tratando-se de uma situação colonial não tínhamos muita chance.
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Essa exigência de igualdade de direitos entre homens e mulheres não é somente coisa de mulheres moçambicanas, mas se trata de um fenómeno global, o que deixa claro para quem quiser ver que isso vem de fora e não é invenção cá da banda.
O feminismo, o gaysismo, o abortismo, etc., é tudo farinha do mesmo saco. É tudo peças da engrenagem da grande máquina global. Por outras palavras, é tudo parte de uma estratégia capciosa para implantar o governo global e as loucas dessas feministas nem se apercebem disso porque não passam de idiotas úteis para usar o vocabulário de Lénine.
As mulheres não vão ganhar nada com essas reivindicações. Elas só vão se prejudicar cada vez mais como temos visto acontecer porque numa sociedade em que as mulheres têm direitos iguais aos dos homens o sustento dos filhos acaba incumbindo aos dois. Ademais, o governo pode convocar as mulheres para irem para guerra. Quantas mães solteiras esse movimento feminista não produziu? Quantos filhos sem lar? Quantos filhos de Karl Radek isso não gerou? E vocês ainda acham que isso é vantagem?! Ora, façam-me favor, isso é empulhação.
Mas as culturas africanas têm muito a dar ainda para o desenvolvimento do mundo.
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Se é somente cultura africana, então não tem nada a dar ao mundo. Você somente pode dar ao mundo aquilo que tem valor universal e não aquilo que tem valor particular, local. A cultura europeia assenta-se nos valores judaico-cristãos e esses valores são universais e não particulares. Quando a moral judaico-cristã diz: não matarás, não cometerás adultério, não dirás falso testemunho, ama ao teu próximo como a ti mesmo, etc., isto não são valores particulares mas universais.
Para mim que vivi entre as macuas, quando olho para as lutas feministas do mundo, eu digo-me “Mas nós tínhamos isso”. E os movimentos feministas, mesmo em Moçambique, quando lutam pelos direitos da mulher usam o modelo europeu, e não vão buscar experiencias práticas provenientes da nossa própria cultura. Não diria que nós temos feminismo, mas temos uma tradição, várias tradições. Mesmo no patriarcado mais severo a mulher tem alguns direitos. Na Europa a mulher não era nada. O cristianismo deles chegou aqui e derrubou tudo, não reconhece a mulher como coisa nenhuma.
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Mais uma vez, Paulina mostra que não conhece a história universal. É uma mentira histriónica dizer que na Europa cristã a mulher não era nada antes do advento do movimento feminista. Quer dizer, Paulina nunca ouviu falar da Rainha Victória, nunca ouviu falar de Maria Teresa da Aústria, nunca ouviu falar de Isabel de Castela, nunca ouviu falar da Rainha Elisabeth I, nunca ouviu falar de Catarina II da Rússia, só para citar os nomes mais poderosos.
Portanto, dizer que o cristianismo não reconhece a mulher como coisa nenhuma é uma mentira histriónica. É somente você olhar em redor e ver como é que as mulheres são tratadas no mundo não cristão e comparar com a forma como elas são tratadas no mundo cristão. O que Paulina diz é uma empulhação rasteira própria de vigaristas!
Já falamos do fato de a guerra civil contribuir para a formação de uma identidade nacional. Pensemos em Ventos do Apocalipse. As mencionadas migrações, as pessoas que fugiram e abandonaram a terra com a qual mantêm ligações ancestrais, não levaram a problemas a nível espiritual? Ou seja, nas crenças africanas os espíritos habitam a terra em que nasceram. E neste sentido as migrações não causaram certo distúrbio espiritual?
É muito interessante esta pergunta. Não vou dar uma resposta muito certa. Esta é uma outra área de estudo. Voltemos um pouco atrás, ao tempo das guerras tribais. Houve muitas lutas entre os zulus, os ndaus, os rongas, os changanas.2 Hoje em dia, as pessoas um pouco mais velhas que eu que dizem que têm espíritos, quando entram em transe, falam zulu que é do Sul, e falam ndau que é do Centro, e falam outras línguas. Quando entram em transe, falam as línguas das pessoas que morreram durante as guerras tribais. Há uma dinâmica que se criou por causa das guerras antigas. Hoje, com estas guerras e estas migrações, começam a existir fenómenos também interessantes. Segundo me parece, este mundo também é dinâmico. A entrada de uns e outros cria conflitos mas depois estabelece-se uma relação de harmonia.


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Quando Paulina diz: “… as pessoas um pouco mais velhas que nós que dizem que têm espíritos,” está a pressupor que há pessoas que tem espíritos e que há pessoas que não tem espírito, o que é um absurdo. Ela não especifica de que espírito está falando. Se ela estiver falando do espírito desprovido de qualquer acidentalidade, ou seja, do espírito em si, segue-se que o que ela diz é um absurdo. Agora, se ela está falando dos espíritos que incorporam nas pessoas nos terreiros de curandeirismo, a minha questão é por que ela diz somente espíritos.

Há dias ouvi falar de um senhor português que entrou em transe e falou maconde do Norte de Moçambique. É um homem que participou na guerra, e sempre viveu com o sentimento de remorso de ter feito alguma coisa que não devia ter feito durante a guerra. E de repente ele enlouquece e começa a falar maconde como um maconde de Cabo Delgado. Os médicos dão uma explicação, os próprios macondes dão outra. Para o médico há todo um clima que favoreceu aquela situação, mas para os macondes é o regresso de gente do passado, dos espíritos. Mesmo neste mundo existe dinâmica. Uma conhecida minha que já faleceu, quando entrava em transe falava todas estas línguas, nguni, zulu, e era daqui. Portanto há ruturas, mas mais tarde isso vai criar uma dinâmica, uma nova compreensão da vida.

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Ora, se eu falo em línguas estranhas, ela me é estranha porque nunca a ouvi e nunca a aprendi de ninguém, ou seja, ela não passa pelo filtro do meu entendimento porque se eu a entendo ela deixa de ser estranha pelo que não se pode tratar de um fenómeno psicológico malgrado ter implicações psicofísicas. Outro ponto ainda, uma vez que essa aprendizagem é imediata e não mediata porque não é mediada pelo entendimento, mas é um conhecimento directo, logo estamos perante uma intuição e a intuição é sempre um acto do espírito e não um acto da psíque e muito menos dos órgãos dos sentidos.

Isso não significa que eu esteja anuindo a tese da Paulina dos espíritos de gente do passado que está regressando. De modo nenhum, até porque essa colocação é muito ambígua. O que ela quer dizer com espíritos dos antepassados? Se ela quer se referir aos próprios antepassados ipsis literis, então, estamos perante a hipótese da reencarnação, o que é um absurdo. Se ela quiser com isso se referir apenas a natureza da alma dos antepassados conforme a definição de espírito dada por Webster, ainda pode ser possíel, mas neste caso, essas tais pessoas teriam que fazer o que as pessoas que tinham aquela essência de alma fizeram e não simplesmente falar a língua que os antepassados falaram, ou uma língua desconhecida qualquer porque isso não prova nada senão apenas que aquela pessoa teve uma intuição que pode ser verdadeira ou falsa, dependendo se essa intuição vem de cima, das esferas celestes do espírito humano ou se vem de baixo, dos degraus mais inferiores da animalidade humana como uma mímese contra-feita daquilo que é autêntico, superior e verdadeiro.

Já ouvi falar várias vezes que curandeiros ou curandeiras quando entram em transe conse guem falar outras línguas e pergunto-me se são línguas que ouviam, por exemplo na infância, mas nunca aprenderam a falar ativamente, e, portanto o cérebro tem um tipo de memória destas línguas que num estado sóbrio e acordado não é acessível para a pessoa, mas em estado de transe sim. Não sei se esta explicação dá conta deste fenómeno.
Acho que não. Eu entendo as coisas da seguinte maneira. Todo o trabalho científico, as descobertas científicas que se fizeram até hoje, segundo os próprios cientistas, fazem parte de dez por cento da capacidade cerebral. O mundo é um infinito e o ser humano com estes dez por cento ainda não alcançou a dimensão do infinito.
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Para você afirmar que usamos apenas dez por cento da nossa capacidade cerebral você teria que conhecer toda capacidade cerebral do homem e sem deixar de levar em conta que a capacidade cerebral dos homens não é espécie do mesmo género. Agora, como você faria para conhecer toda capacidade cerebral do ser humano sem ter toda capacidade cerebral? É a isso que se chama um problema kantiano. Isso é uma pegadinha. Isso é o velho Zenão de Eléia de novo, e de novo e de novo.
Não obstante, para tal ventura de conhecer a capacidade do cérebro humano, essa capacidade cerebral teria que ser um sistema fechado que permitisse ao investigador abarcá-la e subordiná-la, mas acontece que nada em nós é um sistema fechado e até mesmo uma célula não é um sistema fechado visto que recebe toneladas de energia vinda de fora. Já dizia Jean Baptista Vico que nós somente conhecemos aquilo que nós mesmos fazemos e uma vez que não fomos nós que fizemos o cérebro, o conhecimento da sua capacidade sempre será analógico e nunca rigoroso. Quer dizer, só Deus conhece a capacidade do cérebro humano porque foi ele quem fez o cérebro humano.
Agora, dizer que “o mundo é um infinito” é um absurdo tão grande porque o próprio mundo já é um pontinho perdido no infinito e a existência de dois infinitos é uma absurdidade lógica pura e simples.
Há muita coisa ainda que tem de se descobrir. O meu ponto de vista é que é preciso haver uma abertura maior para fazer uma pesquisa mais profunda sobre estes fenómenos porque afetam muitas pessoas. Por exemplo, aqui em Moçambique, quando este tipo de coisas acontece, o primeiro recurso é a psiquiatria que funciona num modelo racional e europeu. As pessoas são tratadas com remédios que são bons, mas há casos em que o remédio não resolve e é preciso uma outra terapia. O conhecimento ocidental nem sempre resulta. Durante a guerra civil a minha mãe teve um trastorno psicológico sério, causado pela morte violenta de um irmão, e levámo-la à psiquiatria, ela fez o tratamento psiquiátrico, mas o fenómeno não passou. Uma médica urbana tomava conta dela. A minha mãe melhorou, mas não ficou bem. A psicoterapia que se tentou fazer também não resultou e fomos transferidos para um psiquiatra zambiano. O psiquiatra começou a fazer perguntas sobre as origens e as crenças da minha mãe. Fomos explicando que ela vem de uma tradição forte. O médico disse: “Para a vossa mãe ficar melhor, é preciso leva-la de novo às raízes da sua tradição. Porque é uma linguagem que ela entende e a partir daí a reação dela vai ser diferente.” Agora um psicólogo, que normalmente é uma menina muito bem vestida, que fala português, que usa sapatos de salto alto, ou um homem bem vestido, não vai ao subconsciente dela. Tem de ser um curandeiro, igual àquele que ela conheceu na infância, e tem de fazer um ritual que está muito mais próximo dela do que aquilo que nós fazemos. O meu pai não queria, mas acabou aceitando. Trouxe o curandeiro a casa. A minha mãe olhou para o curandeiro que começou a falar, a fazer uma e outra coisa. Foi surpreendente a reação dela. Ela disse sim, reconheço, é o espírito da mãe da minha mãe e começa a comunicar com o espírito. A curandeira, que lida com estes assuntos e sabe perfeitamente como fazer o seu trabalho, fez o papel da mãe da mãe dela que lhe trazia paz, tranquilidade, a bênção, todas estas coisas boas. Uma semana depois a minha mãe estava muito bem.
Então, analisando racionalmente o papel da curandeira, ela não fez nada mais, nada menos do que situar a pessoa no seu mundo com os sinais que ela compreende e que a ajudaram tranquilamente a ultrapassar o problema. Quando os europeus chegaram com a supremacia do seu saber cultural, para eles a medicina era uma questão mecânica: ele está doente, tira o dente ou põe um dente postiço e já está. Quando começam a ver que a máquina e o mecânico falham, então vão buscar uma figura chamada psicólogo. O psicólogo é aquele que estuda segundo os padrões de Europa, sem reconhecer que há uma série de outros fenómenos do ambiente que fazem com que o africano seja o que ele é. Com isso eu quero dizer que para um desenvolvimento harmonioso de uma cultura tanto africana como europeia, há uma série de saberes que precisam de ser resgatados e estudados. O que hoje se considera irracional, quem sabe se amanhã será considerado racional. O importante é caminhar ao encontro da verdade das coisas.
Outra questão interessantíssima é a seguinte: quando os europeus chegam com a sua grandeza, dizem logo, os africanos não conhecem Deus, não têm igreja. Têm de ter uma Igreja grande para Deus vir e rezar. Eles fazem cultos rudimentares e primitivos em baixo das árvores, aquela caricatura que se faz. Mas um bom oficiante tradicional vai explicar onde é que se faz a melhor oração para Deus: não pode haver paredes. É preciso um lugar aberto porque Deus é invisível. Está em todas as forças do cosmos, lua, estrela, mar, água, árvore, tudo.
COMENTÁRIOS:
Quando os europeus diziam que os africanos não conheciam a Deus, isso não é uma mentira. Qualquer historiador de religião sabe que o monoteísmo começou com Abrãao e que somente o judaísmo, o cristianismo e o islamismo são religiões monoteístas. Os africanos tinham deuses e não Deus. O que são os deuses senão divinização das forças da natureza e dos resquícios subconscientes da psique humana?
Dizer que Deus “está em todas as forças do cosmos, lua, estrela, mar, água, árvore, tudo”já é fazer apologia do panteísmo. Se Deus está em tudo, então, você pode até canonizar um cão, um porco, uma serpente, um rato, etc., o que já é, de per si, bastante ofensivo para dizer o mínimo.
Um deus que está num lugar não é Deus porque neste caso o lugar teria que ser maior que o próprio Deus para abarcá-lo e subordiná-lo. Quando se diz que Deus está na igreja isso não é literal, é apenas uma figura de linguagem. Por outras palavras, Deus não está na igreja sob a mesma modalidade em que nós estamos quando estamos na igreja porque como disse São Paulo, o Apóstolo: nele somos, existimos e nos movemos. Quer dizer, Deus abarca e subordina todo o existente e não o contrário.
Agora, a melhor oração não se faz num lugar específico porque Deus não está num lugar. Onde é que Deus está? Sto Agostinho dizia que Deus habita na interioridade da alma humana. É aí onde se faz a verdadeira oração. É claro que se referir a interioridade da alma humana que é o seu espírito como um lugar também é uma figura de linguagem porque o espírito humano não é um lugar mas uma presença que sustenta o eu.
Então, a verdadeira oração para chegar a Deus tem de ser fora, não pode ser dentro da igreja.
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Paulina mente com quantos dentes tem na boca, o que também prova que ela nunca orou e portanto não sabe do que está a falar e comete o pecado de soberba porque sendo uma ignorante do assunto pretende se auto constituir rabi do mesmo.
Deus não responde dentro da igreja? Em primeiro lugar, Paulina confunde igreja com lugar de culto. Essa é uma colocação pueril da questão porque a palavra igreja vem do grego eclesia que significa chamados para fora, portanto, falando de pessoas e não de lugar como disse Cristo: “onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, eu estarei no meio deles”.
O que Paulina queria dizer, se calhar, é que a verdadeira oração para chegar a Deus não pode ser feita dentro de um templo. Isso também é confuso e irrelavnte porque sendo Deus Espírito, ele não está nem dentro, nem fora do templo senão apenas como figura de linguagem.
Não é o lugar que diz que a oração é verdadeira ou falsa até porque, sendo a oração uma praticidade humana, ela só pode se fundar no axio-antropológico do certo e do errado, portanto, não pode ser verdadeira ou falsa como se a oração fosse uma actividade meramente especulativa quando, na verdade, ela é uma actividade contemplativa e também prática. Por outras palavras, a oração é uma actividade concreta. Mas não o conceito comum que fazemos do concreto, mas concreto tomado no sentido específice, especifico de com crescior que é crescer junto.
São Paulo, o apóstolo diz que nós não sabemos orar como convém o que corrobora o que eu expus no parágrafo anterior acerca da praticidade humana da oração fundada no axio-antropológico do certo e do errado ou do conveniente e do incoveniente. Portanto, é lamentável que pessoas afectando superioridade abram a sua boca para falar de coisas que não estudaram simplesmente porque tem ódio pueril a coisa como se a expressão desse sentimento inferior fosse um argumento e não uma prova insofismável de “caracter assassination” como diria Hannah Arendt.
Hoje, uma coisa que ainda precisa de ser debatida e aprofundada é esta crença que a religiosidade tem de ser feita em catedrais e que os africanos, de uma maneira geral, recusam porque para eles Deus é a expressão de todo o cosmos.
COMENTÁRIOS:
Primeiro dizer que a religiosidade tem de ser feita em catedrais é no mínimo uma má colocação da questão porque para começo de conversa a religiosidade é um ente de razão e só pode ser tratada incomutavelmente, portanto, ela é eterna e uma coisa eterna, uma coisa que é tota simul, que é desde todo o sempre não pode ser feita nem desfeita como pretende a Sra. Paulina.
COMENTÁRIOS:
Segundo, é uma tolice você dizer que Deus é a expressão de todo o cosmos porque isso faz com que o cosmos seja maior que o próprio Deus, fazendo de Deus apenas um recorte, um pedacinho da totalidade do cosmos. O mais razoável seria dizer que o cosmos é a expressão de Deus e não o contrário. O que é o cosmos? O cosmos é a beleza e a ordem que existem no universo. Entretanto, nem toda essa beleza ou ordem é a expressão do divino mas apenas a sua unidade, por isso eu disse que seria mais razoável e não fiz nenhum apelo ao princípio de identidade, o que seria fazer apologia do panteísmo, o que não passaria de uma tentativa herética de ressurreição de cultos primitivos.
Quando se está dentro de uma igreja só se vêem paredes. E onde está a união das forças cósmicas?
COMENTÁRIOS:
Eu já expliquei que igreja são pessoas e não um topos. Mas tudo bem, suponhamos, embora erradamente, que a igreja seja um topos, um lugar. Ora, que diferença faria entre você estar dentro ou estar fora desse lugar? Por ventura a igreja, considerada desde o ponto de vista topográfico está fora do cosmos para que nela não se dêem a união das forças cósmicas?
Outra coisa, não se vai a igreja (ir a igreja é uma figura de linguagem, uma metonímia) a busca da união das forças cósmicas porque isso transformaria a igreja em mais uma seita das religiões primitivas da Grécia pagã. As religiões pagãs são cosmocêntricas, mas o cristianismo é diferente, ele é a religião do homem como diria o filósofo Mário Ferreira dos Santos.
O cristianismo não está em busca do cosmos, não está em busca da beleza e da ordem existente no universo, mas sim em busca de algo que abarca e subordina todo cosmos. E o que é isso? Aristóteles diz que é o fundamento último da realidade, o qual é o próprio Deus. E onde Deus habita? Sto. Agostinho disse que Deus habita na interioridade da alma humana e não no cosmos.
O que Paulina quer é fazer um sincretismo, uma nova união do cristianismo com o paganismo e nem se dá conta da absurdidade patética desse empreendimento que tanto mal causou ao cristianismo jogando-o nas trevas exteriores milenares da idade média.
E hoje cada dia mais as pessoas começam a reconhecer que acreditar em Deus, se ele existe, pode ser na igreja, pode ser na rua, e pode ser em qualquer lugar. Então, esta liberdade dos africanos faz com que eles sejam indivíduos mais crentes porque para eles em qualquer lugar, a qualquer momento pode estar em comunicação com Deus, enquanto que na igreja só se vai quando o padre está, às 8 horas no domingo quando a missa começar.
COMENTÁRIOS:
Em primeiro Paulina lança uma dúvida sobre a existência de Deus ao usar a expressão: “…se ele existe..”. Em segundo, ela diz : “…Então, esta liberdade dos africanos faz com que eles sejam indivíduos mais crentes porque para eles em qualquer lugar, a qualquer momento pode estar em comunicação com Deus”. E ela nem percebe que isso é uma contradição e se o princípio de identidade é o próprio Deus como disse Edmund Husserl, então, o seu contrário é o próprio diabo.
Mais uma vez, não é o lugar que define se a pessoa é crente ou não e também não é verdade que Deus está em certos lugares e não em outros porque isso colocaria em causa o próprio conceito de Deus como ser omnipresente. Não obstante, não é verdade que os cristãos só invocam a Deus no domingo às 8 horas na igreja. Se Paulina tivesse lido a bíblia como deve ser teria descoberto que Deus disse por meio de São Paulo, o apóstolo, o seguinte: “orai sem cessar”.
Tenho observado – e isto parece ir ao encontro do que a Paulina acaba de dizer – que as culturas bantu têm uma enorme capacidade de absorver outras crenças, outras culturas, sem sentir um conflito ou uma contradição. Por exemplo, falei com dois curandeiros (em Nampula e em Maputo) e ambos me disseram que trabalham juntamente com o hospital, com a medicina moderna. Dizem que às vezes eles precisam primeiro do diagnóstico do hospital para depois poderem tratar o paciente. As culturas bantu também absorveram o islamismo e o cristianismo sem sentir conflitos com a religiosidade espiritista local. Parece-me que as culturas europeias são mais rígidas neste sentido. Acha que esta observação é correta?
É certa. Eu acho que os europeus têm uma rigidez que não tem razão de ser. Os europeus apropriaram-se das grandes tradições, sem pesquisar quais eram as origens, e construíram dogmas. Aqui o conhecimento da história do cristianismo e do islamismo é importante.
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Como diz o filósofo Olavo de Carvalho: “as religiões não são espécies do mesmo género”. Cada religião responde a questões totalmente diferentes das outras. O judaísmo tem como foco uma sociedade nacional sacra. O budismo nem chega a ser uma religião mas simplesmente um conjunto de regras para orientar a sua alma no caminho do bem. Uma prática ascética, apenas. O cristianismo tem o seu foco na salvação da alma individual. O islamismo tem como foco uma sociedade mundial sacra.
Fritjof Schuon diz que a diferença entre as religiões é apenas exotérica mas que esotericamente você tem aquilo que ele chamou de unidade transcendental das religiões. Madame Blavaski diz que o elemento esotérico das religiões é a verdade e que apesar das diferenças exotéricas entre as religiões, esotericamente elas são iguais por causa disso que ela chamou religião verdade que está subjacente em todas as religiões.
É exactamente aqui onde reside o nó de estrangulamento. O que é a verdade?
Se transcendentalmente, esotericamente, as religiões são iguais por que é que as religiões brigam tanto? Essa pergunta deveria surgir quase que instintivamente, mas quase nunca surge. Então, alguma coisa está mal explicada aqui. Por isso eu concordo com Olavo quando ele diz que as religiões não são espécies do mesmo género e digo mais, ou seja, elas não são espécies do mesmo género não apenas exotericamente mas também e principalmente esotericamente.
Negar a existência de conflitos entre as religiões orientais entre si e entre essas e as religiões africanas que para mim não são religiões coisa nenhuma porque não religião sem Deus como dizia Tertuliano é não conhecer a história não apenas de Moçambique, mas também e principalmente a história universal das religiões.
Sigmund Freud resumiu toda motivação humana naquilo que ele chamou de complexo de Édipo baseado no mito do Rei Édipo de Sófocles. Por outras palavras, os conflitos acontecem por causa dos desejos sexuais reprimidos das pessoas. Ora, isso é uma autêntica fraude. Na verdade, quem deu a explicação correcta sobre a motivação humana e a origem dos conflitos foi um outro psicólogo, o dr. Lipôt Szondi com aquilo que ele chamou de complexo de Caim. Quer dizer, os conflitos são sempre motivados por questão de religião que é o único elemento fundador das civilizações. Nunca existiu outro e nunca existirá.
Se olharmos para a história da Bíblia sagrada, é muito bonita. Eu gosto de ler a Bíblia no sentido da busca de diferenças. Quando abrimos o Génesis e o Êxodo, a primeira referência territorial é em África: Egito. Depois vêm Abraão e Moisés. São as três grandes figuras de que eu gosto. Abraão chega com a sua mulher, que era estéril, no Egito e recebe como prenda do faraó uma escrava egípcia com quem vai ter o filho Ismael, que é considerado o pai da nação árabe. Então a história do mundo árabe começa em África. Depois Moisés, que é criado como um príncipe pela filha do faraó, aprende tudo sobre conhecimento, leitura, escrita, etc., e tem a grande revelação divina no monte Sinai que fica no Egito, escreve os Dez Mandamentos no Egito e parte para a terra prometida. Os Dez Mandamentos da lei de Deus foram escritos em solo africano por um indivíduo nascido e criado em África.
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Aqui está uma mentira sórdida. Moisés não escreveu os dez mandamentos, quer na sua primeira edição, quer na sua segunda. Os dez mandamentos foram escritos pelo próprio dedo de Deus. Isso é o que as escrituras relatam. A única coisa que Moisés fez foi lavrar a pedra onde seriam registados os dez mandamentos.
O cristianismo e o islamismo têm África como berço. Mas, quando o europeu pega na história, inventa outra para apagar as origens desta grande coisa que eles consideram religião e que depois deu origem a tantos outros desenvolvimentos. Querem excluir África quando não se pode excluir. África faz parte da história. O tempo foi andando, aconteceram tantas coisas e estamos aqui como povo de novo a sermos colonizados com uma doutrina considerada europeia quando na verdade começou aqui. É sobre este lado que eu acho que os próprios africanos devem começar a dialogar.
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Não é verdade que África é o berço do Cristianismo e do Islamismo. Israel é que é o berço do Cristianismo assim como a Arábia é o berço do Islamismo. Para começo de conversa, Cristo não tinha sangue africano porque ele é descendente de Isaque e não de Ismael o que já não se pode dizer de Maomé. Porém, ainda assim, isso não faz do Egipto o berço do islamismo. Por exemplo, sabe-se que Hitler era austríaco, mas somente um louco diria que o Nazismo nasceu na Áustria pelo simples facto do Führer ser austríaco.
A Bíblia sagrada é outra escola de irracionalismo [risos], mas é a base a partir da qual se afirmam os grandes poderes. Sim, tivemos que criar a capacidade de conviver com as outras culturas por sermos oprimidos, por querermos sobreviver, por necessidade de resistência. E definitivamente não pode haver conflitos de saberes porque África tem alguma coisa para dar. É uma questão de respeitar e pesquisar.
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Escarnecer da bíblia pode, o que não pode é escarnecer dos curandeiros africanos porque senão a Sra. Paulina fica um puto da vida. Se Paulina tivesse um pouco de cultura filosófica saberia que o que ela está dizendo é tão absurdo que nenhum homem ou antes uma mulher medieval se dignaria acreditar numa coisa dessa.
A bíblia não é uma escola de irracionalismo, muito pelo contrário, ela tem mais racionalidade do que muita coisa chamada ciência que anda por aí. O racionalismo é demonstração, demonstração silogística, o qual é um raciocínio em três etapas. Se Paulina tivesse lido um pouco sobre a filosofia da chamada patrística e a filosofia escolástica, teria visto - quero acreditar que sim porque julgo que ela não é tão tonta quanto parece – que todo esforço daqueles grandes filósofos medievais desde Sto Agostinho até Sto Tomás de Aquino, passando por Sto Anselmo, São Bernardo, Sto Alberto Magno, etc., foi um esforço de demonstração das intuições registadas na bíblia.
Quer dizer, Paulina pretende mesmo que foi a bíblia que mergulhou o mundo no irracionalismo? As feministas, os gays, os drogados, os anarquistas, os doentes mentais, os pseudo-cientistas, etc., tudo isso surgiu porque eles leram a bíblia?! Que merda é essa? Quem é que não sabe que Josef Stalin, o homem que foi responsável pela morte de cerca de 60 milhões de russos somente fez isso depois de trocar a sua bíblia pelo livro de Charles Darwin, a origem das espécies? Eu poderia citar aqui uma lista enorme de exemplos de homens que se tornaram irracionais depois de terem lido Karl Marx e que depois levaram a humanidade a desgraça jamais vista mas eu recomendo aos interessados que leiam o livro negro do comunismo de Stefan Courtois e o livro do psicólogo Andrew Lobaczewski intitulado “ponerologia, psicopatas no poder” e vocês vão chegar a conclusão de que quando você se afasta de Deus você perde sua centralidade psíquica, você simplesmente enlouquece como aconteceu com todos os nihilistas como Nietzsche, Jean Paul Satre e tutti quanti.
Acha que a FRELIMO conseguiu dar conta das tradições africanas? Como convivem a política e a tradição? Que tipo de diálogo há, por exemplo, entre a Associação dos Médicos Tradicionais e a FRELIMO?
Em 1975, a Declaração de Independência foi feita numa linguagem colonial: “Abaixo o obscurantismo, abaixo o curandeiro, abaixo os ritos de iniciação! Viva o mundo novo, viva o socialismo científico!” Mas o que é que o socialismo científico está a fazer aqui numa terra cheia de uma cultura? A FRELIMO viu que isso não ia dar certo, porque aumentou outros conflitos. Agora estamos numa altura de tentar serenar de uma forma muito lenta, fazer de conta que se está a respeitar a tradição e a cultura, quando por vezes no fundo é só aparência. Porque o verdadeiro trabalho ainda está por ser feito, ainda não se fez.
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A declaração de independência não foi feita numa linguagem colonial porque a língua portuguesa existia antes do colonialismo e ela sobreviveu ao colonialismo e o socialismo científico também não é uma linguagem científica, senão pseudo-científica. Se fizermos um inventário de todos os países que estiveram envolvidos no processo de colonização veremos que nenhum deles veio sob a bandeira do socialismo seja ele utópico ou científico.
O socialismo foi adotado pelos países da europa do leste no século XX, enquanto a colonização começou oficialmente um século antes com a realização da Conferência de Berlim (1884-1885). Portanto, atribuir a destruição da cultura moçambicana ao colono é fazer uma acusação leviana, é cometer um delito de opinião pelo simples facto de que a agenda dos colonos nunca foi a construção de uma sociedade nova.
O que destruiu nossa cultura foi o marxismo cultural levado até as últimas consequências pelo partido FRELIMO ao longo dos últimos 50 anos no delírio auto-hipnótico de querer implantar um paraíso em terras moçambicanas. Em que consiste esse projecto de um homem novo ou do maravilhoso mundo novo para usar o vocabulário de Aldous Haxley? Consistia, como dizia Gramsci, em todo mundo se tornar comunista sem saber. Ou seja, fazer um mundo novo significa fazer um mundo comunista, fazer um futuro melhor significa fazer um futuro comunista, fazer um homem novo significa fazer um homem comunista que é comunista sem saber que é comunista, o que é exactamente aquilo que Lénine chamava de idiotas úteis, que sãos aquelas pessoas que são comunistas sem saber que o são.
Que dificuldade constitui para si o uso do português para contar estórias que, se contadas em línguas locais, seriam provavelmente mais verosímeis? Qual é a sua relação enquanto escritora com a língua portuguesa?
A minha relação é de conflito. Não há dúvida que eu aprendi a ler e a escrever em português, socializei-me com a literatura de língua portuguesa. Mas existem alguns aspetos culturais que a língua portuguesa não tem capacidade para cobrir.

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Mas isso não acontece apenas com a língua portuguesa mas com todas as línguas. De facto, quando tentamos traduzir algo de um idioma para outro, há muita coisa que se perde, perde-se o sentido filosófico, o sentido teológico, etc., do que foi dito ou escrito porque há coisas que não são traduzíveis, correndo-se até mesmo de no acto da tradução a coisa se tornar ininteligível porque numa palavra não temos apenas um código linguístico mas temos aí a encarnação de um ser, toda uma presença humana, ou seja, cada palavra que falamos ou escrevemos é em certo sentido uma encarnação, por assim, daquilo que somos segundo a nossa constituição mais íntima e muitas vezes isso é intraduzível.

Para além de que, sendo uma língua de dominação, a língua portuguesa é também uma língua de segregação.

MEUS COMENTÁRIOS:
Dizer que a língua portuguesa é uma língua de dominação e de segregação é apenas uma figura de linguagem, uma metonímia e não um conceito rigoroso porque quem domina são pessoas e o máximo que pode acontecer com a língua é ela ser instrumento desse domínio e não propriamente o agente. Como disse Eric Voeglin, essa linguagem ferozmente metonímica do mundo moderno é o que está na origem de todo extremismo. E esse extremismo está patente em toda essa entrevista concedida pela Paulina Chiziane.

Na nossa constituição da república, português é a língua da unidade nacional, mas Paulina diz que a língua portuguesa é uma língua de segregação. Quer dizer, ela nem se quer leu a constituição da república e sai por aí a fazer discursos contra o plasmado na constituição da república. Quer dizer, nesse ínterim, de acordo com Chiziane se abolíssemos a língua portuguesa e cada tribo falasse a sua própria língua, única e exclusivamente, os moçambicanos estariam mais unidos. É disso que se pode deduzir do que Paulina disse. Agora, veja se pode uma coisa dessas?!

Quando escrevo e vou pegando das palavras, de vez em quando fico chocada: os curandeiros são o centro do saber africano. Mas o que é um curandeiro na língua portuguesa? Vai ver no dicionário e a explicação que vai achar é redutora e simplista e serve simplesmente para colocar o curandeiro de lado. Para eles, é um indivíduo que deve ser banido e eliminado.3

COMENTÁRIOS:
Na europa, os cientistas tem hoje o mesmo peso de autoridade que tinha o clero católico na idade média. Em África não é diferente, os médicos e os “cientistas” também tem hoje o mesmo peso de autoridade que tinham os curandeiros, os “skquiros”, antes das independências africanas.
Agora, dizer que os curandeiros são o centro do saber africano é apenas uma metonímia, mais uma vez, conforme já demonstrei em comentários mais acima. O saber não pode ter o seu centro num papel social como os curandeiros. O centro do saber de um povo é a sua autoconsciência. Neste ínterim, o centro do saber africano seria a autoconsciência africana que é o que Roger Scruton chama de alta-cultura, a qual se expressa por meio do que de mais elevado um povo conseguiu produzir e que se encontra expresso na sua literatura, poesia e erudição filosófica. Portanto, a tese de que o curandeiro é o centro do saber africano deve ser rejeitada in limine como uma empulhação.
Outra coisa, a língua é um produto colectivo. No caso específico da língua portuguesa ela é um produto colectivo do povo português e não produto colectivo do povo africano. Agora, se essa língua não expressa a realidade africana de Moçambique, Guiné-Bissau, Angola, etc., isso não é o problema da língua em si, pelo que cabe a cada um desses países individualmente amoldá-la a seus interesses expressivos individuais de modo que ela expresse o que cada país está vendo, sua experiência directa, e isso é válido mesmo no caso de escritores individuais os quais devem procurar amoldar a língua a seus interesses expressivos individuais. Isso é uma coisa tão elementar no mundo da escrita que Paulina como escritora teria a obrigação de saber, se ainda houvesse literatura em Moçambique.
Isto acontece também nos dicionários brasileiros?4
Há alguma diferença. Não é grande, mas há. Em geral, os dicionários brasileiros são mais avançados. Os dicionários da língua portuguesa são livros da cultura do branco. Portanto, o curandeiro é considerado charlatão.

MEUS COMENTÁRIOS:
Aqui há duas coisas: primeiro, Paulina deixa exalar o cheiro nauseabundo do seu racismo anti-branco ao mesmo tempo que manifesta sua solidariedade grupal terceiro-mundista para com o Brasil. É o velho amor masoquista para com o inferior e o desprezo para com tudo que lhe é superior, inabarcável, inatingível.

Segundo, Paulina conclui da “superioridade” do dicionário brasileiro em relação ao dicionário português que para o português o curandeiro é um charlatão e nem se apercebe que ao recorrer a um raciocínio erístico como esse ela mesma está praticando charlatanice. Das premissas que ela coloca não se pode concluir o que ela conclui. Ela comete aqui um non sequitur e nem se dá conta disso. Por que? Porque não tem uma mente ordenadora.

As vezes a pessoa pode ser uma grande erudita como Otto Maria Carpeaux, Nietzesche, etc., e ainda assim não ter uma mente ordenadora que lhe permita unificar todo seu saber. Agora, por que isso é tão difícil para muitas pessoas? É difícil porque elas não têm compromisso nenhum com a verdade na sua própria vida. Então, para elas o que importa é o que elas estão dizendo hoje e nunca fazem aquele recuo no tempo, aquele exame de consciência - condição básica inicial para quem quer pensar - para encontrar uma linha de coerência que unifique o que ele está dizendo hoje com o que ele disse ontem porque em suas consciências essa unidade também não existe, está totalmente ausente. Então, como dizia José Ortega y Gasset, elas não passam de diletantes. Elas só estão se divertindo com as palavras, mas não querem nenhum compromisso com aquilo porque aquilo ainda não penetrou fundo nelas como problema verdadeiramente importante para elas.


O meu dicionário da Porto Editora é de 2002, não sei se melhoraram. Se você procura a palavra “palhota”5, que é aquela casinha feita de palha e palmeira, encontra: “habitação rústica caraterística da raça negra.” Mas porque isso? Hoje é reconhecido que aquele tipo de construção é a mais ecológica. É fresca, quando faz calor arrefece, quando está frio aquece.

MEUS COMENTÁRIOS:
Paulina, mostrando-se incapaz de refutar o conceito de palhota do dicionário da Porto Editora, escora-se no discurso ecológico dos mesmos brancos e racistas que ela tanto odeia. Mas esse argumento ecológico da Paulina é estereotipado e copiado todo ele da televisão para dizer o mínimo, para além de ser um discurso dissimulado de falso africanismo tardio uma vez que Paulina não vive numa palhota.

Como aliar a pobreza a uma raça? Encontro vários aspetos de supremacia de uma cultura sobre a outra. As palavras no dicionário são alguns.

MEUS COMENTÁRIOS:
Por ventura morar numa palhota já foi, alguma vez, sinónimo de riqueza? Nem é preciso ser economista para entender isso, é só ter um pouco de senso de proporções.

Agora, supremacia cultural?! É claro que há supremacia cultural, caso contrário você teria que admitir que todas as culturas são iguais o que é desmentido, na base, pelos factos. Toda cultura baseada em valores universais é superior a toda e qualquer cultura baseada em valores particulares, efémeros e passageiros.

Há culturas cujos valores em torno do qual eles constroem seu imaginário colectivo ao invés de elevar os homens para alturas do que de mais belo e verdadeiro existe, o fazem descer as profundezas abissais do inferno. A Paulina não me vai convencer de que hábitos como canibalismo, incesto, pedofilia, sacrifícios humanos, escravatura, etc., existentes em certos povos sejam culturalmente iguais aos valores como perdão, o amor ao próximo, a caridade, etc. Isso é não ter senso de proporção que é o próprio logos divino. Tudo isso por que? Pela mera vaidade narcisística de afagar seu próprio ego contra toda a razão científica, filosófica e metafísica do mundo.

 Algumas vezes que eu quero retratar uma realidade (eu falo do Sul), quero escrever um ditado e uma forma de pensar, mas tenho de fazer uma tradução e uma aproximação de significado. O que vai resultar não é propriamente a identidade deste povo, mas é uma construção, e as coisas não chegam a ser realmente como deviam ser.

MEUS COMENTÁRIOS:
Eu já disse em comentário anterior que a língua é um produto colectivo e ela não vem amoldada a nossa necessidade expressiva individual, mas nós mesmos temos de tratar de fazer com que a língua expresse aquilo que nós estamos percebendo.

Escrever numa língua estrangeira não é problema nenhum até porque quando você personaliza a língua para que ela se adeqúe as suas necessidades expressivas individuais, ela já não é uma língua estrangeira. Ela é a sua língua. Ademais, muitos grandes escritores escreveram numa língua estrangeira. Sabe-se, por exemplo que na idade média e mesmo na renascença, o latim era a língua culta e todo indivíduo que se arrogasse a tarefa de escrever tinha que fazê-lo em latim que na maior parte dos casos nem era sua primeira língua, mas nem por isso eles foram incapazes de expressar a riqueza cultural dos seus países de origem.

Se os livros tivessem que ser escritos apenas na língua original do autor, isso obrigaria todo mundo a falar a língua de todo mundo o que nunca ninguém conseguiu. Foi para contornar esse obstáculo que se inventou a linguagem matemática e outros artifícios tem sido criado como por exemplo uma língua universal chamada esperanto. Para Mário Ferreira dos Santos, o ecumenismo só pode ser alcançado por meio da simbólica e da Mathese. Se isso serve para as religiões por que não haveria de servir para fins de civilização uma vez que as religiões são o único elemento fundador da civilização?


Mas os próprios escritores atuais ainda não fizeram muito exercício cultural. Eu penso que talvez com tempo vamos dar um espaço àquilo que é a nossa própria cultura. É lógico que vamos servir-nos da língua portuguesa por muito tempo, porque é a língua através da qual comunicamos.

MEUS COMENTÁRIOS:
Max Weber dizia que a história é a soma das consequências imprevistas das acções impremeditadas do ser humano. Isso é importante para entender a questão que a Paulina coloca aqui, ou seja, a cultura não é produto de laboratório. Esta é minha tese. Por outras palavras, você não pode colocar um conjunto de hábitos e costumes num tubo de ensaio e produzir uma cultura por meio de indução de processos sociais. Nenhuma cultura surgiu assim e neste ponto eu concordo com Weber uma vez que todo projecto de sociedade produzido em laboratório acabou em genocídio como o demonstram os estudos de Paul Johnson e Morgentein.
O trabalho do escritor não é dar mais ou mesmo espaço a sua cultura. Isso é convidar os escritores a fazer uma literatura provinciana. É preciso perceber que Moçambique está jogado no universo e que só tem interesse para o universo aquilo que é universal. Não é por acaso que se lêem Homero, Virgílio, Dante Alighieri, Camões, Dostoievisk, etc., até hoje como se tivessem sido escritos hoje, ao passo que os escritores moçambicanos mortos, se calhar, somente o Craveirinha está resistindo a prova do tempo.
Pessoalmente, como pessoa que estuda a cultura e a literatura moçambicana, gostaria muito que no futuro as línguas locais alcançassem o estatuto de línguas oficiais, mas o problema é que são muitas. Seria possível escolher uma língua como padrão para o Sul, outra para o Centro e outra para o Norte, e agrupar as outras línguas como dialetos relacionados com uma destas três principais?
Não sei se isso seria uma grande solução. Eu estou a escutar esta pergunta com muito desgosto porque nós, africanos, como povos tínhamos a nossa estrutura. Por exemplo, a língua changana é grande. Há changanas na província de Gaza em Moçambique, em Gazankulu na África do Sul e no Zimbábue. O território changana é enorme. Chegaram os brancos e dividiram tudo. E agora querem que a gente invente uma nova língua. É muito difícil. Outro exemplo é o macua: o macua abarca quatro províncias: Nampula, Cabo Delgado, o Niassa e a Zambézia. Tem uma enorme extensão territorial e era um Estado.

MEUS COMENTÁRIOS:
Mas afinal, quem é que quer que vocês inventem uma nova língua? Paulina acabou de acusar a língua portuguesa de racismo, o que não passa de metonímia mesmo que ela não o saiba, saltando logo dos tamancos com dedo em riste acusando “os brancos” como ela gosta de se referir aos europeus de terem dividido a África.

Os europeus dividiram a África? Sim, Senhor. E, no caso de Moçambique, eles juntaram três etnias diferentes num único território? Sim, Senhor. Nunca ninguém negou isso. Então, por que apelar de forma recorrente a esse expediente? Por que esse apego ao passado como alguém que tivesse nascido velho e já com saudade do seu passado como naquele filme de Bred Peter, o curioso caso de Benjamim? Não estará Paulina, com esse apelo ao passado se fazendo de morta para assaltar o coveiro?

Se um dia os europeus entraram em África e exploraram os nossos recursos e escravizaram a população africana, não foi sem o precioso colaboracionismo dos reis africanos, sem o qual isso não teria acontecido. Já dizia Samora Machel que o feiticeiro não entra em casa de ninguém sem que alguém de dentro de casa lhe abra a porta. Portanto, jogar a culpa somente sobre um grupo e ignorar a participação do outro grupo é falsificar a história.

O passado já se foi. Não devemos ter nostalgia do passado, mas não devemos ignorá-lo. Aliás, uma vez alguém disse: “quem ignora o passado arrisca-se a repetí-lo” (sic). Por que? Por causa daquilo que disse George Orwell, a saber: “quem controla o passado, controla o futuro e quem controla o presente controla o passado”.

Vou falar de outro aspeto da nossa realidade para chegar à questão da identidade nacional. Quando saio daqui e vou a Nampula sinto-me estrangeira porque a cultura é muito diferente. E quando vou para a Cidade do Cabo na África do Sul sinto-me em casa. Porque eu sou chope, um grupo que vive no meio dos changana. As nossas tradições todas são muito próximas do changana e do zulu da África do Sul. Quando falam zulu na África do Sul, eu entendo. Quando a colonização chegou, nós éramos um grande povo, e hoje somos obrigados a reconstruir. O futuro dirá, mas hoje é muito difícil recuperar as fronteiras antigas. Mas há grandes línguas, o Norte tem macua, o Sul changana, o Centro chona. A partir destas línguas pode-se criar alguma coisa.
COMENTÁRIOS:
Paulina fala em unidade nacional, mas ao mesmo tempo faz apologia do regionalismo e do tribalismo e nem se dá conta de que está se contradizendo, o que mostra que o problema dela com os “brancos” e com a língua portuguesa não é representativo, ou seja, ela não fala em nome dos moçambicanos, ou da cultura moçambicana se é que existe uma coisa chamada cultura moçambicana, mas sim, ela fala em nome dos chopes.
Resultado de imagem para paulina chiziane, o setimo juramento
Como a Paulina e a sua família viveram o tempo da guerra civil? Onde estavam e em que sentido sofreram com a guerra? Estou a pensar também no seu romance Ventos do Apocalipse.
A guerra foi feita no país inteiro e não há uma família que não tenha sofrido, salvo raríssimas exceções. De forma direta ou indireta sofremos a guerra. Eu vivia na Matola com os meus pais e os meus filhos. Várias vezes a rua era o maior hospital, porque no hospital tiravam os remédios, capturavam os enfermeiros, raptavam pessoas. Foi um cenário que vivemos nos últimos anos da guerra civil. Eu era trabalhadora da Cruz Vermelha na altura. Era jovem e quase inconsciente. Percorri o país todo em plena guerra. Vi tanta coisa, chorei e disse: “Guerra nunca mais!” Vivi a guerra civil em direto, vi massacres em direto, vi gente a cair e morrer, fuzilamentos em direto, vítimas de minas em direto. Vi pessoas a correr de um lugar para outro. A Cruz Vermelha dava assistência aos grupos de deslocados que fugiram de uma comunidade para outra em busca de paz. Trabalhei também nos campos de refugiados moçambicanos no Zimbábue a partir da Cruz Vermelha de Moçambique.
MEUS COMENTÁRIOS:
Ao longo de toda a entrevista, Paulina nunca deixou de expressar seu ódio visceral para com “os brancos” como ela gosta de dizer e para com o cristianismo e a cultura ocidental. Entretanto, enquanto os moçambicanos se matavam uns aos outros, quem prestou ajuda humanitária as vítimas da guerra? A cruz vermelha. Até onde eu sei, primeiro, a cruz vermelha é uma organização humanitária europeia e não africana. Segundo, a cruz é o símbolo do cristianismo. Terceiro, o vermelho da cruz é o símbolo do sangue de Cristo.
Você acreditar naquilo que você fala ao invés de acreditar naquilo que seus olhos estão vendo é histeria. E Paulina dá repetidas mostras de histeria em toda a entrevista. Que diferença em relação a Hannah Arendt, uma filósofa judia que viu os judeus irem para os campos de concentração de Auschwitz, irem as câmaras de gás, irem ao holocausto, etc., mas mesmo assim, no seu livro Eichman em Jerusalém, fruto de um julgamento de um burocrata nazista chamado Eichman, que ela mesma assistiu como enviada da New Yorker, ao invés de manifestar qualquer ódio contra Eichaman no seu livro, ela se limitou a dizer: “minha tarefa é compreender e não julgar”. Agora, Paulina, não. A tarefa dela é julgar e não compreender.
Hannah Arendt, no seu último livro publicado postumamente com o título “a vida do espírito”, mostra que as actividades do espírito são três: pensar, querer e julgar. E, neste ponto podemos dizer que Arendt era aristotélica-tomista. Nesse sistema aristotélico-tomista de Arendt, o pensar é, hierarquicamente falando, a actividade mais elevada do espírito e o julgar, a mais baixa e que somente pode ser realizada correctamente com o auxílio das duas primeiras: o pensar e o querer. Mas Paulina abdica da sua capacidade de pensar, da sua capacidade de compreender e não sabe que com isso ela também está amputando sua capacidade de distinguir o bem do mal e sua capacidade de querer com clareza de espírito e que fazendo isso ela está justificando os tais colonizadores destruidores da cultura africana, cometendo o mesmo mal que esses colonizadores cometeram e até pior e tornando esse mal em algo banal pela sua negação a suprema actividade do espírito, que é entregar-se a contemplatio sapientiae, a contemplação sapiencial da verdade.
A guerra civil deve ter causado um trauma muito grande no povo. Pelo que pude observar, o povo não fala muito da guerra, ainda uma história recente. Suponho também que a política neste momento não permitiria que o povo exigisse algum tipo de reparação, por exemplos para as antigas crianças soldado que hoje já são adultos. Que tipo de memória da guerra civil pode cultivar-se hoje em dia?
Infelizmente, para além da memória amarga do tempo da guerra civil, vem essa dor profunda de ainda ir remexer nas armas da mesma guerra. Pelo menos o que tenho ouvido do povo – não dos políticos – é que o povo não quer ouvir falar da guerra. Mas as lideranças insistem… Mas o quadro é este: quando a dor é profunda, as pessoas não falam. Acho que de certa maneira tem falta de energia para se falar de coisas tão amargas. As pessoas que foram vítimas na primeira pessoa sofrem de uma dor tão profunda que não conseguem expressar. A sociedade que viveu a guerra de uma forma indireta, devia ajudar essas pessoas a reabilitar-se, a exigir os seus direitos. Mas estamos absorvidos em tantos problemas… Há associações, por exemplo, que falam dos direitos das crianças, mas não há acompanhamento. A criança vem, ajuda-se, e depois vai, não se sabe para onde. Talvez um dia estas crianças sofridas vão criar uma consciência que vai levar à reivindicação. Mas, por outro lado, as marcas também estão sendo apagadas.
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Veja, Paulina diz: “A sociedade que viveu a guerra de uma forma indirecta, devia ajudar essas pessoas a reabilitar-se, a exigir os seus direitos. “Em primeiro, as pessoas não podem dar ou sonegar o que não tem. Se uma pessoa nunca teve uma experiência directa da guerra ou pelo menos uma experiência da guerra em versão imaginativa por meio da literatura de imaginação ela não terá linguagem para expressar o que uma vítima da guerra experimentou e que, no entanto, não consegue expressar. Qual é o problema com isso? O problema é que toda sua modalidade de ajuda será estereotipada e falhará em prover para as vítimas um senso de orientação eficaz dentro da própria realidade, uma vez que, para princípio de conversa, toda descrição que ele tente fazer da situação estará totalmente deslocada da situação real.
Em segundo lugar, ajudar as vítimas da guerra a exigir os seus direitos só criará mais conflitos. Não sei por que carga de água as pessoas tem uma obsessão doentia pela palavra direito que nalguns casos a coisa até já passou de uma mera obsessão a possessão demoníaca. Se você quer ajudar alguém comece por ajudá-la a compreender a situação dentro da qual ela se encontra e nunca ajudá-la a armar-se para uma outra guerra porque ela vai perder de novo, e de novo e de novo e a Alemanha é disso um exemplo insofismável. Nunca comece uma guerra, principalmente se você está com raiva ou com medo. São Tomás de Aquino dizia que a raiva e o medo são a mesma emoção. Ou seja, se o seu inimigo é mais forte que você, então você fica com medo e se ele é menos forte, você fica com raiva. Mas de qualquer das formas, essas duas emoções são um sinal de fraqueza de espírito e como disse Donald Rumsfeld: “a fraqueza atrai a agressividade”. Então, é preciso ter paciência. “É urgente ter paciência” - já dizia o bom e velho Goethe.
 A literatura, sim, fala da crueldade da guerra civil, por exemplo Ventos do Apocalipse, ou Os Sobreviventes da Noite, de Ungulani Ba Ka Khosa. A literatura pode desempenhar uma função terapêutica para o povo? Dar um tipo de consolo?
Eu acho que sim. Infelizmente somos poucos a escrever. É preciso escrever mais. Eu não falaria do povo, mas falaria de mim mesma. Ventos do Apocalipse foi o primeiro livro que escrevi, mas infelizmente não havia recursos nesse momento para publicá-lo. Fui escrevendo outro, e quando chegou a hora de conseguir algum recurso, a Associação dos Escritores Moçambicanos optou por publicar primeiro Balada de Amor ao Vento. Mas Ventos do Apocalipse foi uma história que mexeu muito comigo.


Como trabalhadora da Cruz Vermelha, eu fui para a província de Gaza, para Manjacaze, onde havia um centro de pessoas que vinham porque acabava de haver um massacre. Cheguei lá toda jovial, pronta a correr de um lugar para outro, fazer o trabalho que tinha. Nós prestávamos assistência alimentar, ajudávamos a organizar os grupos sociais, juntar as crianças num lado, organizávamos pessoas que depois iam tirar a identificação das crianças para a reedificação familiar. Eu e outras colegas coordenávamos estas atividades a nível da comunidade: descobrir quem sabe ler, quem tem mais energia, etc. e colocar as pessoas a funcionar juntamente com o governo, para fazer a gestão da vida.
Encontrei uma mulher já de uma certa idade, ela olhou para mim e eu vi que ela se assustou e desapareceu da minha frente. Como eu estava com muito trabalho, vi mas não prestei muita atenção. Dando voltas no campo volto a cruzar com ela num outra ocasião e ela foge. Então dei-me conta que aquela mulher fugia de mim. Comecei a persegui-la. Ela estava numa tenda sozinha e fui lá e entrei. Quando ela olha para mim, começa a chorar. Ela só diz: “Minha Uxeme” (Uxeme é o nome da filha), “quando eu te vi chegar, parecia que era a minha filha a regressar da morte. Ela foi assassinada ontem. Vocês têm a mesma maneira de falar, a mesma maneira de andar. Tudo o que tu tens, ela também era assim. Quando eu te vi, vi a imagem da minha filha, mas depois disse não, não é ela. É esta dor que eu levo.” Sentei-me, fiquei com ela a conversar e tentei consolar a mulher. Saí dali com a sensação de uma revolta, porque comecei a compreender o grande dilema: a filha dela estava grávida, acabou na vala comum, a mulher nem viu o funeral da filha. Teve de abandonar tudo para vir e ficar no centro e lá encontra alguém que lhe faz lembrar a filha. Durante muitos meses eu viajei com isto na cabeça. Quando dei por mim já estava a escrever as memórias.

MEUS COMENTÁRIOS:
O problema nem é tanto escrever mais, até porque isso acaba desvalorizando a própria escrita ou acabando por fazer o que disse o crítico literário brasileiro, Rodrigo Grugel: “muita retórica e pouca literatura”. O que precisamos é de escrever coisas de altíssima qualidade e isso só acontece quando o escritor tem profundidade, aí sim, as palavras saem com força deslumbrante, mas para adquirir essa profundidade é preciso ter uma vida interior pautada na busca da verdade de facto. Somente quando a pessoa se dedica a uma verdadeira vida de estudos, as pessoas em torno se reconhecem naquilo que você tiver escrito, você terá destravado suas línguas, você terá dado voz as suas impressões autênticas que elas não conseguiam expressar por falta de linguagem e isso é, indubitavelmente, bastante reconfortante.

 Ventos do Apocalipse funcionou para mim como uma cura, porque eu sempre sonhava com aquela mulher, ouvia o choro da mulher e incomodava muito. A partir do momento que escrevi senti uma espécie de alívio, como se tivesse tirado um peso muito grande de dentro de mim. A literatura pode funcionar como catarse coletiva e também como registo da memória. A nova geração tem de saber o que se passou ontem, mas infelizmente há muito poucos relatos. Espero que um dia venham a surgir porque há coisas terríveis.

MEUS COMENTÁRIOS:
De facto, a literatura pode ser um meio de libertação, mas para isso o escritor tem que fazer aquilo que Saul Bellow chamava de “expressão das impressões autênticas” porque se forem meramente impressões estereotipadas também não adianta nada, mas se as impressões expressas forem directas, forem autênticas, se a pessoa não conseguir se libertar realmente do drama da guerra e outros, pelo menos literariamente ela conseguirá e nunca mais vai ser escrava daquela situação. Porém, mais uma vez, não é o simples facto de contar ou expressar que vai produzir a tal libertação, mas a dose de sinceridade que a pessoa coloca nesse acto, ou seja, a escrita, quando escrevemos, isso tem que ser uma espécie de confissão porque somente a confissão, o exame de consciência é capaz de produzir na alma aquela paz interior que  não é um privilégio exclusivo dos místicos.

Não sei se conhece os textos da Lina Magaia [1940-2011]. São histórias trágicas. Um chama-seDuplo Massacre, outro chama-se Dumba Nengue. Ela tem uma coisa que eu gosto: ela não respeita nenhuma das regras de escrita, seja jornalística, seja de outro tipo. Ela simplesmente colocou o sentimento no papel. Escreve de uma forma crua e violenta.

MEUS COMENTÁRIOS:
Escrever “… de uma forma crua e violenta” não significa escrever sem regra. Esta é mais uma confusão que as pessoas fazem. Na verdade, ninguém escreve sem regras, o que pode acontecer é você não seguir regras fixas e pôr um pouco de discricionariedade no que você escreve e fazer assim uma escrita livre. Mas uma escrita livre não significa escrever sem regra porque toda liberdade de escrita é dada dentro de regras pré-determinadas pelo género no qual você está escrevendo.
Se a linguagem empregue por Lina Magaia nos seus textos é crua e violenta e não polida ou politicamente correcta, longe dela estar a escrever sem regras, ela, antes pelo contrário, encontrou a verdadeira regra da escrita a qual subjaz não na forma do género literário mas na alma do próprio escritor que é a sinceridade de facto que é o que faz com que o escritor escreva o que ele está vendo e não o que a atmosfera em torno feita de chavões, topoi, slogans diz.

Já falámos bastante de tradições africanas. Ainda gostava de fazer uma pergunta em relação à convivência entre o sistema poligâmico das famílias africanas e o sistema monogâmico das famílias cristãs. Acha que a poligamia vai desaparecer com o tempo?
O sistema poligâmico não vai desaparecer. Só vai usar outras roupagens. Aqui tudo é monogâmico, mas tudo é ao mesmo tempo poligâmico. Este conflito entre os dois sistemas é, no fundo, a sociedade a ficar desestruturada.
MEUS COMENTÁRIOS:
Ora, que tudo aqui seja poligâmico e monogâmico não tenho dúvidas, mas não sob o mesmo aspecto. Ou seja, há um aspecto monogâmico e um aspecto poligâmico da mesma relação conjugal. Mas quando Paulina diz que existe “… conflito entre os dois sistemas”, este conflito também é sob um aspecto diferente daquele sob o qual a poligamia e a monogamia coexistem. Por outras palavras, a poligamia e a monogamia podem ser objectivamente conflituantes mas subjectivamente pacíficos.
Não é verdade que o conflito entre poligamia e monogamia está a desestruturar a sociedade porque, neste caso, você nem se quer conseguiria identificar a sociedade. Você identifica uma sociedade pela sua estrutura que é o que nos dá uma visão de conjunto da própria sociedade. Portanto, não é a poligamia ou a monogamia ou a forma de vestir ou de comer, etc., que vão desestruturar ou estruturar a sociedade. Essas coisas somente têm um efeito epidérmico sobre a estrutura da sociedade mas não são capazes de afectar ou seja de abalar os fundamentos mais profundos da estrutura social.
Agora, a sociedade se estrutura em torno de algo mais permanente como a cultura entendida aqui como um sistema de valores em torno do qual se constrói o imaginário colectivo de um povo como disse Olavo de Carvalho. Se você mudar o sistema de valores de uma sociedade por meio de uma lenta e progressiva revolução cultural que vai afectar a imaginação das pessoas, aí sim você conseguirá mudar a estrutura dessa sociedade.
 A poligamia tem vantagens no que diz respeito à estrutura da sociedade, mas tem desvantagens no que diz respeito aos direitos da mulher. Por outro lado, a poligamia é uma questão económica. Uma mulher que diz hoje “Abaixo a poligamia!”, se encontrar um homem muito rico casado, esquece os princípios e vive com ele. Eu já vi isso muitas vezes. Raparigas que estão na universidade com uma formação muito boa, de repente estão perante um homem cheio de propriedades e lojas e carros e contas bancárias, e elas esquecem tudo e juntam-se ao homem. E fazem o que consideram um contrato de casamento que não é um casamento oficial, porque a lei só permite o casamento com uma mulher.
MEUS COMENTÁRIOS:
As questões económicas resumem-se a análise custo-benefício. Por outras palavras, minimização de custos e maximização de benefícios. Este comportamento mini-max é próprio das sociedades capitalistas, mas a poligamia é pré-capitalista. O capitalismo é um ismo que surgiu no século XVIII, enquanto nós temos a prática da poligamia já presente em sociedades muito mais antigas, muito anteriores até mesmo ao advento do cristianismo o que impugna na base a tese de que a poligamia nada mais é que uma questão económica.
Conheço uma senhora com formação universitária em Economia que foi trabalhar numa província e conheceu um homem que tem duas mulheres. Era tão rico que no dia do aniversário dela ofereceu-lhe um trator agrícola de um preço muito superior a um Mercedes Benz. A menina olhou para a esquerda e para a direita e disse: “O que eu ganho como economista não vale nada. Tenho aqui este mar então deixa-me mergulhar.” Aceitou a prenda. Passado pouco tempo, o homem abriu um supermercado para ela, e depois deu-lhe uma frota de camiões. E ela diz: “Se fiz economia foi para poder dormir, se estou a trabalhar aqui é porque preciso de dinheiro. Apareceu-me aqui este homem que me dá tudo.” Esqueceu tudo e ficou com as coisas dela. Têm agora três filhos. Vive já numa relação de harmonia com as outras mulheres. Mas a harmonia entre eles é uma harmonia de interesse financeiro. Cada uma delas sabe que, se se zanga com este marido que fornece todas as soluções, vai perder. Então é mais fácil ficar amiga das outras mulheres. O inverso também existe: homens que ficam com três ou quatro mulheres para pô-las a trabalhar para ele. Existem os dois lados.
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Na verdade, poligamia não é o casamento de um homem com muitas mulheres, ou de uma mulher com muitos homens, no caso da poliandria. O que acontece na poligamia é que são vários casamentos com um só homem. Agora, ao nível das cidades o que se verifica é um homem casado com uma mulher porém com uma, duas, ou mais mulheres, mas essas mulheres não são suas esposas mas sim suas amantes. Quer dizer, aqui temos um caso claro de adultério ou infidelidade conjugal. Na poligamia é diferente: um homem tem muitas mulheres e todas elas são suas esposas, portanto, aqui, a questão do adultério não se aplica.
Agora, esse caso que a Paulina conta não podemos negar que acontece mas não é representativo porque primeiro, a poligamia abunda no campo e não nas cidades. Segundo, em Moçambique, há muita poligamia no campo entre pessoas que possuem apenas uma machamba e alguns animais e, às vezes nem isso, o que deixa evidente que não pode ser que aquelas pobres mulheres do campo se casem por questões económicas.
 E dentro deste sistema o que é o amor? Eu falei aqui em Maputo com uma mulher e ela disse-me que amor significa cuidar. Quando tentei explicar-lhe o que é o amor para mim partindo da minha cultura, ela sublinhou muito que aqui o amor não é exclusivo. Acha que o amor é diferente dependendo da cultura ou é universal?
É um grande debate. Eu acho que não chegaremos a conclusão nenhuma. Mas eu diria que o amor como sentimento é universal, mas cada cultura fez a construção da sua ideologia sobre o amor.

MEUS COMENTÁRIOS:
Não é verdade que se debatermos, vamos dizer assim, acerca do amor não vamos chegar a conclusão nenhuma. Na verdade, o problema nem chega a ser a conclusão mas sim a má colocação do problema e uso de premissas que não foram submetidas a uma arbitragem dialéctica a mais rigorosa possível, ou pela preparação deficiente no maneio da técnica dialéctica ou pela falta de domínio daquilo que Aristóteles chamou de “opinião dos sábios”, requisito indispensável para a formulação do status questionae.

A percepção de que o amor é um sentimento é uma falsa percepção. Na verdade, não é a percepção que está errada mas sim a interpretação dessa percepção. Você está tomando o acidente pela coisa em si. Isso é uma metonímia. Na verdade, o sentimento é apenas um dos muitos acidentes do amor mas não a sua essência. Então, é preciso cavar a coisa e ir retirando as sucessivas camadas que encobrem a verdadeira essência do amor e o sentimento é uma dessas camadas que devem ser removidas até que se encontre a verdadeira substância do amor, aquilo que sub esta.

Sto. Tomás de Aquino definia o amor como o desejo de eternidade do ser amado. Quer dizer, o amor é o próprio Deus. Não se trata de uma discussão de perspectivas, mas da apresentação da única perspectiva válida. O amor não tem várias perspectivas, o amor não tem vários pontos de fuga, ele tem somente um ponto de fuga que é o próprio Deus que é o fundamento mesmo da realidade só para usar o vocabulário de Aristóteles. Portanto, não importa o que você sente. O que importa são as suas acções reais.

Eu gosto muito de ler algo sobre a poligamia e há elementos comuns. Falemos por exemplo de um dos maiores polígamos do mundo, o rei Salomão. Dizem que tinha cerca de oitocentas amantes e cerca de setecentas e cinquenta esposas [risos]. Mas para este homem das mil e quinhentas mulheres existia apenas uma: Sabá. Significa que dentro deste sistema, as outras são um número, mas há uma que é eleita.

MEU COMENTÁRIO:
Essa história do Rei Salomão não está bem contada. Em nenhum lugar nas escrituras temos o registo desse pretenso romance entre Salomão e a Rainha de Sabá. De onde é que veio isso? Isso veio do ocultismo, especialmente da Cabalá judáica.

Aqui em Moçambique tínhamos o rei Mataca, que, segundo uns livros, tinha cerca de seiscentas esposas e, segundo outros, cerca de trezentas e cinquenta. Mas só uma sobressai, Achivanjila.6 Está enterrada no Niassa no distrito de Majune. Portanto, as outras todas eram um número.
O anterior rei da Suazilândia, o Sobhuza, tinha também umas duzentas e cinquenta mulheres, mas havia uma que era a eleição dele. Mesmo nesse sistema, o amor é universal e manifesta-se. Ele acabou amando alguma, ele vai dizer que ama as outras também, porque o amor é tudo, a gente tem de amar as crianças, até os bois e as galinhas, então aquelas mulheres eram um pouco como os bois e as galinhas.
Existem outras histórias de príncipes dos países árabes. Outro exemplo é o Taj Mahal. O homem, quando construiu aquele palácio tinha muitas mulheres, mas dedicou aquele palácio a uma só. Aquela relação de exclusividade que todos queremos e nem todos conseguimos encontrar. A própria história da humanidade faz esta revelação, que o homem pode ter muitas mulheres, mas ama uma.

MEU COMENTÁRIO:
Essa imagem que Paulina usa, comparando as mulheres com bois e galinhas é horrível mas também falsa, ou seja, não é verdade que na poligamia somente uma mulher é amada pelo marido como pessoa e outras são amadas a mesmo título que se amam os animais. É possível um homem amar mais de uma mulher e vice-versa? Na verdade, a questão nem deveria ser essa, mas sim, a seguinte: “é possível uma pessoa amar mais de uma pessoa?” Os factos da realidade mostram que sim, logo é possível porque daquilo que é real postula-se a sua possibilidade e daquilo que é possível postula-se a sua necessidade. Mas o amor têm vários graus e mesmo dentro de sua própria família os pais não amam todos os filhos com o mesmo grau de intensidade. Na verdade, somente Deus é capaz de amar a todos sem diferença de graus porque graus são apenas acidentes e isso não existe no amor divino senão esse seria apenas contigente e não necessário.

Só que na nossa cultura o amor é um direito masculino e não feminino. O homem pode amar, mas a mulher não. A mulher tem de amar de acordo com os valores culturais e daí que amar seja cuidar. Mas o amor é o mesmo.
MEU COMENTÁRIO:
O amor não é um direito, nem masculino, nem feminino. Já dizia Simone Weil que direito é obrigação de outrem. Ou seja, se alguém tem o direito de ser amado, isso significa que alguém tem a obrigação de amá-lo.  Agora, não há uma obrigação sem uma lei que me imponha essa obrigação. Eis aqui uma outra questão: o que é lei? Montesquieu, no seu livro, o espírito das leis define lei como uma “relação necessária que surge da natureza das coisas”, quer dizer, dos factos mesmos. Agora, quais são os factos? Existem muitos, mas há um que não podemos olvidar que é que o homem é mau por natureza, diferentemente do que dizia Russeau. Ora, sendo o homem mau, a única relação necessária que resulta disso é o puro ódio entre os homens transformando cada homem no lobo do outro homem para usar o vocabulário de Hobbes e não o seu contrário. E, numa sociedade como essa, o amor não pode ser uma obrigação mas sim uma concessão. Na verdade, quando se obriga as pessoas a amarem, disso não resulta o amor genuíno mas o seu contrário. Portanto, somente por um acto da graça divina é que o amor é possível. Como diz São João, o apóstolo: "nós amamos porque Ele [Deus] nos amou primeiro".
O seu livro mais recente, Por Quem Vibram os Tambores do Além?, que escreveu juntamente com o curandeiro Rasta Pita, não foi publicado em Portugal.
Foi interessante. Ninguém comentou o livro até hoje. Regressei do Brasil há uma semana. O livro está a ser recebido maravilhosamente no Brasil. O público brasileiro acha o livro muito interessante. Encontrei curandeiros brasileiros que me confirmaram que o processo de desenvolvimento do curandeirismo é exatamente aquele. Havia pessoas lá de vários países, por exemplo da Colômbia, que me perguntavam se esse curandeiro não teria disponibilidade para viajar para uma troca de experiências, porque tudo o que ele relata é muito semelhante àquilo que eles têm. E encontrei uma pajé que também tinha lido o livro e me disse: “O meu processo de formação foi assim.”
Mais uma vez, eu tenho sorte, porque faço uma coisa que no primeiro momento todos acham estranha e acham que não se deve publicar, mas vem um mundo de fora que diz que é isso que deve ser escrito. Passou-se também com Niketche. Porque a nossa realidade ficou escondida durante muitos anos. O mundo considerado irracional, que por exemplo os psiquiatras e psicólogos consideram uma alucinação, afinal tem uma outra explicação. A compreensão deste mundo pode ajudar.

MEUS COMENTÁRIOS:
Já dizia Hugo Von Hofmansthal que nada está na política de um país que não esteja primeiro na sua literatura. Essa exaltação do irracional, essa exaltação do ocultismo, etc., feita pela Paulina, um dia vai se reflectir na política. Mais cedo ou mais tarde veremos neste país a política do curandeirismo ou o curandeirismo da política, ou seja, um casamento entre política e ocultismo como aconteceu na Alemanha nazista, em que os políticos ao invés de pôr seus lerdos cérebros para funcionar vão tomar suas decisões baseadas em oráculos de bruxos e as consequências disso são desastrosas.

Não vejo nenhuma diferença entre Paulina Chiziane, Helena Petrovna Blavatsky, Alice Bailey, Alan Kardec, senão apenas uma diferença de grau. O esforço dessa turma toda é e sempre foi lançar uma cortina de fumaça sobre a verdadeira religião pela exaltação histérica de forças demoníacas sob o pretexto de estar a resgatar a tradição, quando na verdade, estão trazendo a tona velhas mentiras, velhos erros que já foram a muito refutados. Essas falsas luzes são muito atractivas mas elas somente semeiam niilismo e todo o tipo de negatividade que as reforçam até a exaustão como num ritual autofágico de deuses inferiores.

Sim, parece-me que neste campo espiritual e mágico ainda há muita pesquisa por fazer. Também considero que seria muito enriquecedor recolher os mitos das tradições orais em Moçambique, porque as pessoas estão a perder a costume se contar histórias às crianças. Por exemplo, aqueles mitos matriarcais que aparecem em O Alegre Canto da Perdiz e em que o mundo originalmente era dominado pelas mulheres, realmente existem ou são invenção sua?
Existem. Eu fui apanhar aquilo na zona mais, mais, mais tradicional. Nas cidades nunca ninguém ouviu falar daquilo. Só conhecem Adão e Eva. Mas este trabalho já começou de certa maneira. Já se publicaram alguns livrinhos, mas tem de continuar. Há mitos extraordinários. Os mitos da região Sul, por exemplo, já quase desapareceram porque não houve recolha. Para mim, o importante é esta ousadia de provocar e, a partir dali, as pessoas vão perceber que é uma riqueza que precisa de ser explorada.
MEUS COMENTÁRIOS:
Aristóteles definia o mito como a narrativa da estória dos deuses. Ora, se o pressuposto de que originalmente o mundo era dominado é um mito, logo torna-se falso exibir isso como um facto histórico porque neste caso já não seria mais mito. A palavra facto vêm do latim “factum” que quer dizer aquilo que foi feito e um mito nunca foi feito, nunca aconteceu. Paulina volta mais uma vez a dar seu show de inépcia no que tange a simbólica.
Um mito nunca pode ser interpretado de forma literal mas sim de forma simbólica, por isso é que a linguagem mítica é sempre do nível poético-retórica. Por exemplo, quando você lê ou ouve um mito que diz que o mundo originalmente foi dominado pelas mulheres, você não pode em nenhum momento entender isso literalmente como se o mundo mesmo lá no início tivesse sido dominado pelas mulheres porque historicamente isso não se sustenta.
Na simbólica a mulher simboliza o princípio passivo e o homem o princípio activo como o yin e o yang chinês. Este é o beabá da simbólica e se você nem sabe isso, então você não tem o direito de abrir a boca para dizer um ai sobre essas coisas. Portanto, simbolicamente, longe de você dizer que originalmente o mundo foi dominado literalmente pelas mulheres o certo é você dizer que originalmente o mundo foi dominado pelo princípio passivo da psique humana, o que Jung chamava de anima e nunca dizer que as mulheres dominaram o mundo o que é coisa de analfabeto, palpiteiro metido à besta.
PS: Leia toda entrevista [aqui]. 

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