terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

O que é ser um grande romancista?

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No romance as palavras não podem ter autonomia de vôo, porém, lendo Mia Couto, você se depara com uma presença excessiva do discurso poético. Então eu digo: Mia Couto é um grande poeta, porém, ele não é um grande romancista, de modo nenhum.

Paulina Chiziane faz a mesma coisa, ela diz que vai narrar um drama mas, de chofre, ela faz uma metásbasis exaloguenos, saltando do plano narrativo para o plano retórico e não percebe que mudou de género.

George Lukács, que o Olavo de Carvalho disse ser o único grande filósofo produzido pelo marxismo, definiu romance como “narrativa de um mundo degradado conforme ele é vivenciado por um personagem também degradado” (sic). Neste blog, eu analisei o célebre romance de Dostoiéviski, “crime e castigo”, e essa definição de Lukács aparece inteira naquelas 5 centenas de páginas daquele romance, em que se tem por um lado, Raskolnikov, um personagem totalmente degradado e, por outro lado, se tem um mundo degrado simbolizado pela cidade de St. Petersburg com todo seu cortejo de bêbados, mendigos, prostitutas a exemplo de Sonietchka, usurários como a velhota que Rodka matou a machete.

Um romance com personagem santo não existe. Aliás, existe um, o do escritor francês George Bernanos, “diário de um pároco”, porém, isso já não mais é romance. Um romance é um drama e uma das características do drama é que o personagem tenha culpa porque se ele não tiver culpa, se ele for um santo, isso já não é mais drama, é tragédia como aparece nas peças de William Shakespeare.

Ora, dizemos que Shakespeare é um dos maiores dramaturgos de todos os tempos. Agora, eu li alguma coisa de Shakespeare, eu li Macbeth, Hamlet, Romeu e Julieta, Otelo e o mercador de Veneza, o qual foi a primeira obra de Shakespeare por mim lida. As peças de Shakespeare são meio dramáticas e meio trágicas, se bem que elas estejam mais para a tragédia do que para o drama. Por exemplo, em Otelo, Desdémona não tem culpa do mal que se abate sobre ela e o próprio Otelo, seu marido que enciumado acaba por matá-la, também não tem culpa. Hamlet e Romeu também não têm culpa. Macbeth já é diferente porque ele, simplesmente, acaba pagando pelos seus pecados. Se calhar Shakespeare não seja assim um tão grande dramaturgo porque suas peças estão permeadas de tragédias, porém, ninguém pode negar que ele é a grande encarnação das tragédias gregas, as quais tiveram seu ápice na “encenação” da morte de Sócrates.

 Não poucas pessoas me têm criticado pelo facto de eu dizer que Paulina Chiziane e Mia Couto, os mais badalados escritores moçambicanos, não são grandes romancistas, ao invés de tentar refutar, se puderem, as razões que tenho apresentado. Eu nunca disse que esses dois escritores não são grandes escritores, mas que eles são grandes romancistas, lá, isso, não. Agora, se eles são grandes escritores ou não isso é uma outra questão. Só que, neste país, ser escritor e ser romancista é tudo espécie do mesmo género.

Diz o filósofo Olavo de Carvalho que “um escritor é aquele para o qual cada palavra tem um sentido que vai para além do seu sentido dicionarizado” (sic). Quer dizer, o escritor é aquele que pesa cada palavra e, no século XIX, o escritor que mais praticou essa técnica de pesar cada palavra para ver a impressão que cada uma delas daria nos diversos ambientes em que fosse evocada foi o Gustave Flaubert, autor do célebre romance “Madame Bovarie”.

Contudo, quando você lê as obras de Paulina Chiziane, em primeiro lugar, você já adivinha como a história irá acabar, o que destrói a simbologia do próprio romance como aquilo que Susan K. Langer chamou de “matriz de intelecções possíveis” (sic). Quando você lê Dostoiéviski, Jacob Wassermann, você não sabe qual vai ser o desfecho do romance porque há muitas ameaças de fim mas, em Paulina, isso não existe porque o enredo dos seus romances é tudo estereotipado, é literatura panfletária de propaganda feminista, quando, na verdade, a função de um escritor é fazer “registo de impressões autênticas” (sic) como disse Saul Bellow, mas impressões autênticas sobre a realidade sem dar a ela nenhuma elaboração ideológica e nem mesmo dialéctica ou analítica porque, neste caso, convém que você escreva ensaios ao invés de obras de ficção.

Nos romances de Mia Couto, você se depara com uma presença excessiva do discurso poético. No romance as palavras não podem ter autonomia de vôo, quer dizer, você não pode parar no meio da leitura e dizer: “que frase mais bonita!” Porém, lendo Mia Couto, isso é impossível. Então eu digo: Mia Couto é um grande poeta porque ele tem a técnica da poesia que o poeta Bruno Tolentino definiu como “uma maneira memorável de dizer” (sic), porém, ele não é um grande romancista, de modo nenhum, porque ele diz que vai fazer um romance, narrar um drama, mas, depois, ele acaba fazendo uma metásbasis exaloguenos, ou seja, ele sai do plano discursivo meramente narrativo e vai para o plano poético e não percebe que trocou de géneros e Paulina Chiziane faz a mesma coisa, ela diz que vai narrar um drama mas, de chofre, ela salta do plano narrativo para o plano retórico e não percebe que mudou de género.

Não é proibido você inovar no romance, desde que isso não altere as condições básicas que definem um romance. Por exemplo, Dostoiéviski introduziu no romance as discussões filosóficas, ninguém antes dele tinha feito isso, porém, os seus romances não perderam as propriedades tradicionais do romance. Analisando as obras dos grandes romancistas da história da literatura universal como Dostoiéviski, Wassermann, Stendhal, Flaubert, etc., fica claro o seguinte: no romance, o personagem não é um santo, mas sim, um tipo degradado; os enredos expressam uma tensão tal que você não tem como adivinhar o fim e mesmo chegado ao fim você fica com aquela interrogação do tipo: “não entendi porque aquele personagem fez isso”? E aí, então, começa a elaboração intelectual do romance. No romance, a linguagem é tão simples que dá impressão de que o drama não está sendo narrado mas, sim, acontecendo e, um dos escritores, aqui, em Moçambique, que tem uma linguagem assim, é o Marcelo Panguana e Luis Bernardo Honwana. Pode ser que haja outros escritores assim.

Se queremos saber alguma coisa acerca da psique humana, a que é que vamos recorrer? – pergunta Olavo - aos topois, aos chavões, aos slogans? De modo nenhum. Mas acontece que as obras da Paulina Chiziane são todas assim. E aqui temos uma outra característica que faz um grande romancista que é que ele regista suas experiências reais sem fazê-las passar pelo filtro ideológico do partido, igreja, ONG, etc., a que ele pertence. Contudo, isso não significa que o romancista e os escritores em geral devem viver todas as experiências abissais ou sublimes da vida como a experiência da ascese e santidade, a experiência de pertencer a uma quadrilha de ladrões, a experiência do consumo de drogas, etc., como Dostoiévisk que era viciado em jogos e Wassermann que era um homem fraco subjugado por uma mulher que, no fim das contas, não passava de uma coitada. Esses escritores viveram profundamente, intensamente os dramas que eles narraram.

Na verdade, toda literatura ocidental-européia foi feita por pessoas que tiveram experiências radicais. Experiencias do céu e do inferno. Como diz Olavo, “todo escritor de verdade faz o trajecto inteiro da divina comédia…quer dizer, tem que esticar do inferno até o céu” (sic). Porém, nem todos passam por essas experiências com a medida profundidade para poder narrá-las e outros passam por elas, porém, ou não consegue narrar aquele drama por não ter linguagem suficiente para tal e devido talento literário ou acaba morrendo por lá mesmo.

Se seu ambiente em torno é banal, neste caso, o último recurso que lhe sobra é ter uma capacidade imaginativa enorme que lhe permita viver imaginativamente, isto é, como possibilidade lógica apenas, aquilo que você não viveu existencialmente. E um dos escritores que conseguiu fazer isso muito bem foi Dante Alighieri, o qual assinala que sua descida aos infernos e sua passagem pelo purgatório e subida ao paraíso, experiências essas registadas na sua “Divina comedia”, foi apenas visual. Ele estava lá como observador. Ele não viveu aquilo existencialmente mas, apenas, cognitivamente.

O poeta já é diferente, sua experiência interior é mais importante do que aquela tida no nível meramente sociológico. Não admira que neste país, malgrado a profusão de obras poéticas nos últimos tempos, não haja poetas de verdade. As pessoas até que tem linguagem para se expressar porque leram, sei lá, contos, poemas, romances, de mil autores, mas eles não têm vida interior nenhuma e porque elas não têm nenhuma profundidade, o que elas escrevem não sai com força nenhuma e só faz aquele voo de galinha e cai.

Razões tinham os escolásticos quando diziam: “primeiro viver, depois filosofar” porque como diz Olavo: “um país que não tem uma vasta literatura, as ciências sociais, as ciências políticas, são uma palhaçada” (sic). E isso corrobora o que foi dito pelo poeta Hugo Hofmansthal de que “nada está na política de um país que não esteja primeiro na sua literatura” (sic). Contudo, isso não se aplica apenas as humanas, mas também a todas as ciências porque a crise do mundo moderno conforme demonstrado por Guenón em seu “a crise do mundo moderno” é uma crise da ciência, a qual tem como causa sua incapacidade de compreender o homem e você não vai compreender o homem por meio da filosofia ou das ciências naturais ou sociais sem que primeiro consiga apreende-lo na literatura porque é aí que você tem o sistema de valores em torno do qual aquele homem constrói seu imaginário colectivo, porém, para tal, a literatura tem romper com os clichés como dizia Martin Amin.

Agora, em Moçambique, isso não acontece. Tivemos, nos últimos anos, muitos sequestros, tensão político-militar, crise económica, assassinatos de políticos, pedofilia, quebra da qualidade da educação, etc., porém, nada disso está registado na nossa literatura. Pelo contrário, vemos os nossos escritores escreverem acerca de Ngungunhana como o Ungulani Bakakhossa no seu “Ualalapi”. Porém, Gungunhana está totalmente descrito nos anais da história. Quer dizer, as pessoas estão com a cabeça no mundo da lua.

É claro que isso pode ser revertido mas para tal é preciso começar a escrever coisas sérias, literatura de verdade, porém, para que tal ocorra, os escritores devem saber com quem estão dialogando e para isso é preciso fazer aquilo que disse T.S.Elliot no seu ensaio sobre a tradição em literatura, i.e, absorver a tradição literária inteira e depois articular a recomendação de Mallarmé de “dar um sentido mais puro as palavras da tribo”, ou seja, a tribo já está falando, porém, você recua desde o reportório das questões gerais que estão em voga para a sua percepção individual, amoldando a linguagem, a qual é um produto colectivo, as suas necessidades expressivas individuais e só daí é que você é um escritor de verdade.

ESCRITO POR|XADREQUE SOUSA|shathreksousa@gmail.com

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