O abandono dos princípios universais do direito de propriedade é o que está na origem do surgimento da tragédia dos comuns associada aos contratos de depósitos monetários irregulares.
A articulação entre a tragédia dos bens comuns e o contrato de depósitos foi proposta por Jesus Huerta de Soto. Antes de entrarmos no mérito da questão vamos esclarecer o que é tragédia dos comuns e o que é contrato de depósito.
O conceito de tragédia dos comuns foi criado pelo ecologista Garret Hardim na sua obra "the tragedy of commons". A tragédia dos comuns é um caso especial das externalidades negativas. Como toda e qualquer externalidade negativa, tomada na sua generalidade, a tragédia dos comuns é um problema que resulta da indefinição do direito de propriedade e indefensabilidade da mesma. Um exemplo de tragédia de bens comuns ou tragédia de comuns séria o esgotamento das reservas de peixe existente num lago por um pescador que explora toda reserva de peixe do lago porque o direito de propriedade do lago está indefinido e como está indefinido ninguém tem incentivo para protege-lo. Isso é o que se diz na gíria popular que o que é público é de todos e o que é de todos não é de ninguém. Se não é de ninguém, logo, ninguém tem incentivo para defender o que não é seu.
Posto isso, vamos esclarecer alguns pontos sobre o contrato de depósito. O contrato de depósito pode ser regular ou irregular. O contrato de depósito regular é o contrato que tem como objecto contratado as coisas específicas. Esse depósito é um depósito selado. Nesse tipo de contrato no caso de perda do bem contratado o banco não tem nenhuma responsabilidade sobre o sucedido. O contrato de depósito irregular tem como objecto contratado os bens fungiveis. Esse depósito é um depósito a vista. Ocorrendo a perda do bem fungivel contratado o banco assume total responsabilidade.
O contrato de depósito monetário irregular está sujeito aos princípios tradicionais e universais do direito de propriedade. Os princípios tradicionais do direito de propriedade encontramos no direito Romano e o princípio universal do direito é a igualdade perante a lei que F.A.Hayek chama de isonomia.
O princípio universal do direito de propriedade, segundo Jesus Huerta de Soto nos conduz a afirmar que isso implica a prática de um coeficiente de caixa de 100% por parte dos bancos sobre o depósito monetário irregular. Vamos esclarecer isso nos seguintes termos: o contrato de depósito e neste caso de depósito de um bem fungivel não é o mesmo que contrato de comodato ou contrato de mútuo. No contrato de mútuo que é um contrato de empréstimo ha transferência legal de propriedade e disponibilidade do bem contrato. Porém, no contrato de depósito monetário irregular apenas se transfere a propriedade do bem mas não a sua disponibilidade, o que aignifica que nao ha uma transferência efectiva de propriedade.
No contrato de depósito monetário irregular quando o depositante se dirige ao banco para levantar o seu depósito de bens fungiveis é claro que dada a natureza do bem fungivel ele não vai levantar exactamente o bem fungivel que ele depositou porque este terá se misturado com o bem fungivel da mesma categoria e qualidade depositado por outros depositantes. Por exemplo, vamos imaginar que você vai depositar num armazém 1000 litros de óleo de soja. Imagine também que há outros clientes que vão depositar também óleo de soja naquele armazém em diferentes quantidades. Agora, imagine que você vai ao armazém para levantar 300 litros de óleo de soja. É claro que ninguém garante que os 300 litros de óleo de soja que você vai levantar fazem parte daquele lote de 1000 litros que você levantou porque não há nenhum sinal naqueles 1000 litros de óleo de soja que os diferenciam de outros litros de óleo de soja depositados por outros depositantes. Caso contrário, isso já não seria depósito de bens fungiveis mas um depósito de coisas específicas, um depósito em espécie.
Uma vez que voce não vai levantar exactamente o óleo que você depositou mas um óleo da mesma categoria, qualidade e quantidade diz-se que há transferência de propriedade mas isso não é uma transferência de propriedade propriamente dita porque o tantundem em igual quantidade e qualidade está disponível para o momento em que o depositante quiser dispor do seu bem fungivel.
Quando alguém vai fazer um depósito, ele faz isso pensando que está guardando o seu dinheiro. Se ele não quisesse guardar o seu dinheiro ele iria fazer um contrato de mútuo com o banco e não um contrato de depósito. Assim, quando um depositante faz um depósito ele não está transferindo a propriedade do seu dinheiro para o banco mas apenas está transferindo o direito de Custódia do seu dinheiro para o banco. É por isso que o depositante paga as despesas ligadas a esse serviço de custódia como as despesas com serviços de contabilidade e do uso do cofre forte do banco.
Porém, nem todos concordam que nao haja transferência de propriedade do depósito do depositante para o depositário. Um desses que nao concorda é o filósofo escolástica da a escola de Salamanca do século de Ouro espanhol (séc. XVI, XVII), Luís de Molina. Ele chega a dizer que o contrato de depósito é no fim das contas um contrato de mútuo ou empréstimo "precário". Mais tarde vemos ressurgir esse pensamento em muitos outros pensadores e banqueiros como John Law, Ricardo de Cantillon e outros tantos que tinham interesse direto nas veleidades inflacionistas pela tentação de lucro fácil e exorbitante que poderiam obter através da prática do sistema de reservas fracionárias.
Temos aqui um debate já montado entre os que defende os princípios tradicionais do direito de propriedade como o faziam os romanos e podemos testemunhar pelos escritos que nos legaram Cícero, catão, ulpiano, pianiano e aqueles que adoptam a posição de Molina como Domingos de Soto e outros. Porém, vejamos o seguinte: se o depositante ao depositar o seu dinheiro pensa que detém ainda a propriedade e disponibilidade daquele dinheiro e o banco ao receber aquele depósito também pensa que detém a propriedade e disponibilidade daquele depósito, sefue-se que temos um problema que é o problema de não sabermos quem é que detém a propriedade daquele dinheiro. Essa indefinição do direito de propriedade dá origem ao que Garret Hardim chamou de "tragedy of commons".
O que estamos dizendo aqui é que essa indefinição do direito de propriedade do depósito conduz a tragédia dos comuns. Neste caso, se todos detêm a propriedade do depósito, o depositante e o depositário, logo, aquele depósito é um bem comum do depositante e do depositário e como vimos, um bem comum não é bem de ninguém concretamente falando e isso conduz a destruição daquele bem porque quando há indefinição da propriedade de um bem ninguém se predispõe a defende-lo.
Agora, os neoclássicos dizem que a tragédia dos comuns como um caso especial das externalidades negativas é uma falha de mercado e, portanto, está justificada a intervenção do estado na economia como provedor dos ditos bens públicos. Na verdade, não é prover mas defender aquilo que se supõe ser um bem público. Culpar o mercado é o que todos intervencionistas e socialistas como Ha-joon Chang gostam de fazer. Porém, o culpado das externalidades negativas não é culpa do mercado mas sim do abandono dos princípios universais do direito de propriedade.
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