sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Religiões comparadas

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A história das grandes religiões universais mostra que as religiões são, na verdade, um condensado simbólico e mitopoético da história dos povos, em cujo seio elas surgiram.
Cada religião é um fenómeno único, sendo assim, cada uma delas só pode ser refutada na ambiguidade lógica interna das suas doutrinas e na ambiguidade da narrativa dos factos históricos ligados ao seu surgimento e processo evolutivo, se existirem.

A ideia que muitas pessoas fazem de religião é bastante pueril o que só revela que estão apenas a tentar pontificar acerca de coisas de que nada entendem porque não a estudaram, se limitando apenas a tratar todas as coisas em termos de conjecturas e de imaginação, o famoso “achismo”.

Uns dizem que a religião é coisa de pessoas pobres e intelectualmente atrasadas e esta é apenas uma das provas do espírito de “achismo” que permeia toda a classe falante deste país, uma vez que o povo miúdo não tem opinião sobre coisa nenhuma. Mas isso é uma mentira grotesca que beira a mendacidade psicótica porque os maiores cérebros da filosofia e da ciência eram homens de religião como Galileu Galilei, Isaac Newton, Descartes, Sócrates, Xavier Zubiri, Einstein, Michael Faraday, Maxwel, Leonard Euler, etc. Os maiores génios das artes também eram homens de religião tais como Rafael Di Santi, Leonardo Da Vinci, Michel Ângelo, Fiódor M. Doistoiévisk, Jacob Wasserman, etc.

Outros ainda dizem que a religião é um conjunto de doutrinas nas quais você acredita sem ter motivos para acreditar e, com isso, dão seu histriónico show de inépcia em matéria de religião. Não obstante, confundem religião com um conjunto de ritos, cultos, códigos de ética e assim por diante que, no final das contas, significa confundir comida com cardápio, ou seja, é um pensamento metonímico que toma a causa pelo efeito, instrumento pelo agente, a obra pelo autor e assim por diante.

Nada disso é a religião em si. Considerada desde o seu étimo latino “religare”, religião significa religar, reconectar. Ora, só podemos religar algo que um dia esteve ligado e que por esta ou aquela razão deixou de estar ligado. Não é preciso ser um perito em teologia para nos darmos conta de que o homem perdeu a sua ligação com o espiritual ao mesmo tempo que reforçou sua ligação com o universo material, mormente com o advento do materialismo mas, não o materialismo de Berkley que procura encontrar a realidade também na matéria. Antes pelo contrário, o materialismo transmutado em ateismo militante que apregoa que não há realidade fora da matéria ou seja, que não há realidade fora da caverna de Platão onde os materialistas contemplando as sombras projectadas na parede julgam que nada existe no mundo real para além de sombras.

Quando analisamos as grandes religiões universais como o cristianismo, o islamismo e o judaísmo que são as 3 maiores religiões monoteístas do mundo chegamos a conclusão inexorável de que muito do que se diz sobre religião nem se quer chega a tocar na superfície mais visível da questão. A história dessas religiões, longe de corroborar o que delas se especula, mostra uma outra realidade. Por outras palavras, a história das grandes religiões universais mostra que as religiões são, na verdade, um condensado simbólico e mitopoético da história dos povos, em cujo seio elas surgiram.

Não haveria judaísmo sem a história da vida e obra de Abraão, Isaque e Jacó; a história da vida de Moisés e da escravidão dos israelitas no Egipto; a história das guerras de conquista da antiga Canaã; a história dos profetas e reis de Israel, etc. Por outras palavras, o judaísmo antes de ser um corpo de crenças, códigos éticos, ritos e cultos é a história do povo de Israel ao longo dos últimos 5 mil anos.

O mesmo sucede com o cristianismo que antes de ser uma doutrina, uma crença, é um facto. A vida, obra, morte e ressurreição de Jesus Cristo são um facto, não uma doutrina. A história dos apóstolos e da igreja nos últimos 2016 anos não são uma crença, uma doutrina mas sim, um facto, i.e., antes do cristianismo ser uma doutrina, uma crença, ele é a história de Jesus Cristo, dos apóstolos e da igreja em geral decorrida ao longo dos últimos dois milênios. 

Quando analisamos o islamismo chegamos a mesma conclusão. Sabemos que o Corão foi escrito um pouco antes da morte de Maomé. Mas antes do Corão estar completo, Maomé personificava a religião islâmica enquanto decorria o processo de revelação da mensagem corânica que durou um quarto de século e Maomé continua sendo o islam encarnado ainda hoje. Por outras palavras, antes do islam ser uma crença, ele é a vida e obra de Maomé. Ele é a história do povo mussulmano ao longo dos últimos 1500 anos.

Por outras palavras, se alguém me traz uma doutrina que ele diz que é cristã, eu tenho que examiná-la à luz da vida e obra de Cristo, dos apóstolos e da longa história da igreja porque se essa doutrina for contrária a isso, ela é uma heresia e deve ser rejeitada in limine. O mesmo sucede com o islam, ou seja, cada doutrina deve ser analisada à luz dos haddites que são o testemunho escrito da vida e obra de Maomé. No judaísmo, qualquer doutrina que entre em contradição com o que foi o modus vivendi e operandi dos patriarcas, de Moisés e dos profetas, é uma blasfémia muito grave.
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Não é incomum ouvir as pessoas dizerem que todas religiões são iguais, que Deus é um só, ou seja, o Deus dos cristãos é o mesmo Deus dos mussulmanos, é o mesmo Deus dos judeus e assim por diante. É preciso termos um pouco de cautela antes de endossarmos essas declarações porque se todas as religiões são iguais como quem diz que “todos os caminhos levam a Roma”, a pergunta que deveria surgir na nossa alma quase que instintivamente deveria ser a seguinte: se Deus é um só e se todas as religiões são iguais porquê é que elas brigam tanto entre si”? Mas essa pergunta quase que nunca surge.

Fritjof Schuon, o maior estudioso de religiões comparadas do século XX disse que as religiões têm dois aspectos, ou seja, elas tem um aspecto exotérico e um aspecto esotérico. O aspecto exotérico é a própria religião conforme praticada pelas massas ao passo que o aspecto esotérico é a prática espiritual mais profunda daquela religião acessível somente aos iniciados.

Schuon diz que exotericamente as religiões são diferentes mas ele acreditava na possibilidade de uma unidade transcendental das religiões, aliás, este é o título da sua obra mais célebre “The Transcendental Unity Of Religions”, tendo recebido imensos elogios inclusive de T.S.Elliot, poeta laureado com prémio Nobel de literatura. Na verdade, essa visão da unidade transcendental das religiões é um pouco da visão teosófica apresentada pela Madame Blavatsky no seu livro “A Doutrina Secreta” em que ela diz que, malgrado as religiões serem exotericamente diferentes, elas são iguais esotericamente porque todas elas, no nível esotérico, participam da religião verdade.

Ora, isso é um pouco complicado porque a “verdade” para os cristãos é aletheia, palavra grega que significa revelação, a qual é o evangelho que, por sua vez, é Cristo. Para os judeus, a verdade é a Torah e Moisés é a verdade encarnada para eles como diz Branham. Para os mussulmanos, a verdade é o Corão, sendo Maomé a verdade encarnada como está subentendido em Schuon e não só isso mas também o selo da profecia segundo a tradição islâmica.

Transcendentalmente, procurar uma unidade entre as religiões também é complicado. Não sei se Schuon tinha em mente o mesmo que Mário Ferreira dos Santos ao pensar numa unidade transcendental das religiões que era conseguir essa unidade por meio da simbólica e da mathese. Mas, como eu disse, isso fica muito mais complicado porque, por exemplo, a simbólica cristã é muito diferente da simbólica islâmica. Na verdade, a simbólica cristã está mais próxima da simbólica judaíca. Se olharmos para as parábolas de Cristo, ele falava mais de ovelhas, joio e trigo e peixes e não admira que a religião cristã tenha penetrado tão profundamente na cultura ocidental mais do que em qualquer outra cultura. No islam, eles usam mais o símbolo da lua, das estrelas mas, em rigor, isso já não é mais simbólico mas sim alegórico.

Uma unidade transcendental das religiões teria que ser aquela que abarcasse e subordinasse todos os pontos em disputa ao nível de todas as religiões mas, como é que você vai fazer isso sem nivelar por baixo as divindades das várias religiões? By the way, as várias religiões que existem no mundo atendem a fins completamente diferentes no sentido teleológico da coisa. Explico-me.

O cristianismo é uma religião voltada para o individuo e ele tem como mote a salvação da alma individual. O islam é uma religião universal voltada para a construção de uma sociedade mundial sacra e é por isso que eu tenho dito que quando o cristianismo sair de cena, ou o islam será imposto no mundo inteiro como a religião do governo mundial, ou o islamismo vai se fundir com o satanismo da elite global e haverá uma nova religião universal sob a forma de sincretismo religioso ou ainda, o satanismo da elite global vai prevalecer sobre todas as demais formas de religião. No que tange ao judaísmo, se trata de uma religião nacional que se propõe a edificar uma sociedade nacional sacra. Podíamos falar também do budismo, só que o que acontece é que nenhum budista vai consentir em chamar o budismo de religião. Para eles o budismo é apenas o guiamento da alma mas não sem um fim teleológico ao qual tendem todas suas práticas de yoga, jejum, auto flagelamento, etc., antes pelo contrário, tudo que eles fazem é no sentido de alcançar a iluminação, o nirvana e se livrarem do samsara que é o eterno ciclo das reencarnações.

Maomé dizia o seguinte: “concorrei na prática do bem que no dia do juízo dirimiremos as nossas diferenças”. É claro que no dia do juízo passaremos a entender tudo aquilo que não pudemos entender nesta vida como diz Dostoevisky porém, nada mais poderá ser mudado “naquele dia” porque a essência de todas as coisas estará completada como escreveu Mallarmé no túmulo do seu amigo Alan Poe: “Tel qu’en lui même enfim, l’eternité l’echange”. Não quero com isso entrar na discussão de qual religião é verdadeira e qual é falsa até porque a verdade e a falsidade não estão na forma da religião, nos seus ritos, nos seus dogmas mas no juízo como bem demonstrou Aristóteles e Descartes na sua meditação de filosofia primeira, mas sim concordar com Olavo de Carvalho quando ele diz que “as religiões não são espécies do mesmo género”, ou seja, não se pode comparar as religiões quer no seu aspecto exotérico, quer no seu aspecto esotérico. Cada religião é um fenómeno único, sendo assim, cada uma delas só pode ser refutada na ambiguidade lógica interna das suas doutrinas e na ambiguidade da narrativa dos factos históricos ligados ao seu surgimento e processo evolutivo, se existirem.

ESCRITO POR|XADREQUE SOUSA|shathreksousa@gmail.com

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