A história das
grandes religiões universais mostra que as religiões são, na verdade, um condensado
simbólico e mitopoético da história dos povos, em cujo seio elas surgiram.
Cada religião é um
fenómeno único, sendo assim, cada uma delas só pode ser refutada na ambiguidade
lógica interna das suas doutrinas e na ambiguidade da narrativa dos factos
históricos ligados ao seu surgimento e processo evolutivo, se existirem.
A ideia que muitas pessoas fazem de religião é bastante
pueril o que só revela que estão apenas a tentar pontificar acerca de coisas de
que nada entendem porque não a estudaram, se limitando apenas a tratar todas as
coisas em termos de conjecturas e de imaginação, o famoso “achismo”.
Uns dizem que a religião é coisa de pessoas pobres e
intelectualmente atrasadas e esta é apenas uma das provas do espírito de “achismo”
que permeia toda a classe falante deste país, uma vez que o povo miúdo não tem
opinião sobre coisa nenhuma. Mas isso é uma mentira grotesca que beira a
mendacidade psicótica porque os maiores cérebros da filosofia e da ciência eram
homens de religião como Galileu Galilei, Isaac Newton, Descartes, Sócrates,
Xavier Zubiri, Einstein, Michael Faraday, Maxwel, Leonard Euler, etc. Os
maiores génios das artes também eram homens de religião tais como Rafael Di Santi,
Leonardo Da Vinci, Michel Ângelo, Fiódor M. Doistoiévisk, Jacob Wasserman, etc.
Outros ainda dizem que a religião é um conjunto de
doutrinas nas quais você acredita sem ter motivos para acreditar e, com isso, dão
seu histriónico show de inépcia em
matéria de religião. Não obstante, confundem religião com um conjunto de ritos,
cultos, códigos de ética e assim por diante que, no final das contas, significa
confundir comida com cardápio, ou seja, é um pensamento metonímico que toma a
causa pelo efeito, instrumento pelo agente, a obra pelo autor e assim por
diante.
Nada disso é a religião em si. Considerada desde o seu
étimo latino “religare”, religião significa religar, reconectar. Ora, só
podemos religar algo que um dia esteve ligado e que por esta ou aquela razão
deixou de estar ligado. Não é preciso ser um perito em teologia para nos darmos
conta de que o homem perdeu a sua ligação com o espiritual ao mesmo tempo que
reforçou sua ligação com o universo material, mormente com o advento do
materialismo mas, não o materialismo de Berkley que procura encontrar a
realidade também na matéria. Antes pelo contrário, o materialismo transmutado em ateismo militante
que apregoa que não há realidade fora da matéria
ou seja, que não há realidade fora da caverna de Platão onde os materialistas
contemplando as sombras projectadas na parede julgam que nada existe no mundo real para além de sombras.
Quando analisamos as grandes religiões universais como o
cristianismo, o islamismo e o judaísmo que são as 3 maiores religiões monoteístas
do mundo chegamos a conclusão inexorável de que muito do que se diz sobre
religião nem se quer chega a tocar na superfície mais visível da questão. A história
dessas religiões, longe de corroborar o que delas se especula, mostra uma outra
realidade. Por outras palavras, a história das grandes religiões universais
mostra que as religiões são, na verdade, um condensado simbólico e mitopoético
da história dos povos, em cujo seio elas surgiram.
Não haveria judaísmo sem a história da vida e obra de Abraão,
Isaque e Jacó; a história da vida de Moisés e da escravidão dos israelitas no
Egipto; a história das guerras de conquista da antiga Canaã; a história dos
profetas e reis de Israel, etc. Por outras palavras, o judaísmo antes de ser um
corpo de crenças, códigos éticos, ritos e cultos é a história do povo de Israel
ao longo dos últimos 5 mil anos.
O mesmo sucede com o cristianismo que antes de ser uma
doutrina, uma crença, é um facto. A vida, obra, morte e ressurreição de Jesus
Cristo são um facto, não uma doutrina. A história dos apóstolos e da igreja nos
últimos 2016 anos não são uma crença, uma doutrina mas sim, um facto, i.e.,
antes do cristianismo ser uma doutrina, uma crença, ele é a história de Jesus Cristo,
dos apóstolos e da igreja em geral decorrida ao longo dos últimos dois milênios.
Quando analisamos o islamismo chegamos a mesma conclusão.
Sabemos que o Corão foi escrito um pouco antes da morte de Maomé. Mas antes do Corão
estar completo, Maomé personificava a religião islâmica enquanto decorria o
processo de revelação da mensagem corânica que durou um quarto de século e Maomé continua sendo o islam encarnado ainda hoje. Por outras palavras, antes do islam
ser uma crença, ele é a vida e obra de Maomé. Ele é a história do povo mussulmano
ao longo dos últimos 1500 anos.
Por outras palavras, se alguém me traz uma doutrina que
ele diz que é cristã, eu tenho que examiná-la à luz da vida e obra de Cristo,
dos apóstolos e da longa história da igreja porque se essa doutrina for contrária
a isso, ela é uma heresia e deve ser rejeitada in limine. O mesmo sucede com o islam, ou seja, cada doutrina deve
ser analisada à luz dos haddites que
são o testemunho escrito da vida e obra de Maomé. No judaísmo, qualquer
doutrina que entre em contradição com o que foi o modus vivendi e operandi
dos patriarcas, de Moisés e dos profetas, é uma blasfémia muito grave.
***
Não é incomum ouvir as pessoas dizerem que todas
religiões são iguais, que Deus é um só, ou seja, o Deus dos cristãos é o mesmo
Deus dos mussulmanos, é o mesmo Deus dos judeus e assim por diante. É preciso
termos um pouco de cautela antes de endossarmos essas declarações porque se
todas as religiões são iguais como quem diz que “todos os caminhos levam a
Roma”, a pergunta que deveria surgir na nossa alma quase que instintivamente deveria
ser a seguinte: se Deus é um só e se todas as religiões são iguais porquê é que
elas brigam tanto entre si”? Mas essa pergunta quase que nunca surge.
Fritjof Schuon, o maior estudioso de religiões comparadas
do século XX disse que as religiões têm dois aspectos, ou seja, elas tem um
aspecto exotérico e um aspecto esotérico. O aspecto exotérico é a própria
religião conforme praticada pelas massas ao passo que o aspecto esotérico é a prática
espiritual mais profunda daquela religião acessível somente aos iniciados.
Schuon diz que exotericamente as religiões são diferentes
mas ele acreditava na possibilidade de uma unidade transcendental das
religiões, aliás, este é o título da sua obra mais célebre “The Transcendental
Unity Of Religions”, tendo recebido imensos elogios inclusive de T.S.Elliot,
poeta laureado com prémio Nobel de literatura. Na verdade, essa visão da
unidade transcendental das religiões é um pouco da visão teosófica apresentada
pela Madame Blavatsky no seu livro “A Doutrina Secreta” em que ela diz que,
malgrado as religiões serem exotericamente diferentes, elas são iguais
esotericamente porque todas elas, no nível esotérico, participam da religião
verdade.
Ora, isso é um pouco complicado porque a “verdade” para
os cristãos é aletheia, palavra grega
que significa revelação, a qual é o evangelho que, por sua vez, é Cristo. Para
os judeus, a verdade é a Torah e Moisés é a verdade encarnada para eles como
diz Branham. Para os mussulmanos, a verdade é o Corão, sendo Maomé a verdade
encarnada como está subentendido em Schuon e não só isso mas também o selo da
profecia segundo a tradição islâmica.
Transcendentalmente, procurar uma unidade entre as religiões
também é complicado. Não sei se Schuon tinha em mente o mesmo que Mário
Ferreira dos Santos ao pensar numa unidade transcendental das religiões que era
conseguir essa unidade por meio da simbólica e da mathese. Mas, como eu disse, isso fica muito mais complicado
porque, por exemplo, a simbólica cristã é muito diferente da simbólica islâmica.
Na verdade, a simbólica cristã está mais próxima da simbólica judaíca. Se
olharmos para as parábolas de Cristo, ele falava mais de ovelhas, joio e trigo
e peixes e não admira que a religião cristã tenha penetrado tão profundamente
na cultura ocidental mais do que em qualquer outra cultura. No islam, eles usam
mais o símbolo da lua, das estrelas mas, em rigor, isso já não é mais simbólico
mas sim alegórico.
Uma unidade transcendental das religiões teria que ser
aquela que abarcasse e subordinasse todos os pontos em disputa ao nível de
todas as religiões mas, como é que você vai fazer isso sem nivelar por baixo as
divindades das várias religiões? By the
way, as várias religiões que existem no mundo atendem a fins completamente diferentes
no sentido teleológico da coisa. Explico-me.
O cristianismo é uma religião voltada para o individuo e
ele tem como mote a salvação da alma individual. O islam é uma religião
universal voltada para a construção de uma sociedade mundial sacra e é por isso
que eu tenho dito que quando o cristianismo sair de cena, ou o islam será
imposto no mundo inteiro como a religião do governo mundial, ou o islamismo vai
se fundir com o satanismo da elite global e haverá uma nova religião universal
sob a forma de sincretismo religioso ou ainda, o satanismo da elite global vai
prevalecer sobre todas as demais formas de religião. No que tange ao judaísmo,
se trata de uma religião nacional que se propõe a edificar uma sociedade
nacional sacra. Podíamos falar também do budismo, só que o que acontece é que nenhum
budista vai consentir em chamar o budismo de religião. Para eles o budismo é
apenas o guiamento da alma mas não sem um fim teleológico ao qual tendem todas
suas práticas de yoga, jejum, auto flagelamento, etc., antes pelo contrário,
tudo que eles fazem é no sentido de alcançar a iluminação, o nirvana e se
livrarem do samsara que é o eterno ciclo das reencarnações.
Maomé dizia o seguinte: “concorrei na prática do bem que
no dia do juízo dirimiremos as nossas diferenças”. É claro que no dia do juízo
passaremos a entender tudo aquilo que não pudemos entender nesta vida como diz
Dostoevisky porém, nada mais poderá ser mudado “naquele dia” porque a essência
de todas as coisas estará completada como escreveu Mallarmé no túmulo do seu
amigo Alan Poe: “Tel qu’en lui même enfim, l’eternité l’echange”. Não quero com
isso entrar na discussão de qual religião é verdadeira e qual é falsa até
porque a verdade e a falsidade não estão na forma da religião, nos seus ritos,
nos seus dogmas mas no juízo como bem demonstrou Aristóteles e Descartes na sua
meditação de filosofia primeira, mas sim concordar com Olavo de Carvalho quando
ele diz que “as religiões não são espécies do mesmo género”, ou seja, não se
pode comparar as religiões quer no seu aspecto exotérico, quer no seu aspecto
esotérico. Cada religião é um fenómeno único, sendo assim, cada uma delas só
pode ser refutada na ambiguidade lógica interna das suas doutrinas e na
ambiguidade da narrativa dos factos históricos ligados ao seu surgimento e
processo evolutivo, se existirem.
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