sábado, 26 de novembro de 2016

O Fingimento Colectivo

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Você não tem mais como separar a cultura moçambicana desse fenômeno do fingimento colectivo. E o pior de tudo, é que não se trata daquele fingimento poético absolutamente artístico que um poeta costuma ter como disse Fernando Pessoa quando escreveu que o poeta é um fingidor, mas se trata de algo verdadeiramente patológico. Quer dizer, chegamos a aquele ponto em que de tanto fingirmos, não somente para os outros, mas principalmente, para nós mesmos, isso desceu para o nosso inconsciente colectivo e começamos a pensar que aquilo não é mais um fingimento absolutamente inocente mas a própria realidade, como que a fazer jus a aquela técnica de Gobbels da mentira repetida que se tornou verdade.

Em Moçambique, quando um doente vai ao hospital, o médico, quase que instintivamente pergunta:  “Tudo bom com o (a) Sr. (a)”? Mas se tudo estivesse bem com aquela pessoa, ela não iria ao hospital se consultar com um médico porque, no final das contas,  um hospital não é um parque de diversões. E por incrível que pareça, o paciente responde: “Está tudo bem, só essa minha doença...” e aí, então, começa a prática clínica. Quer dizer, o médico finge que não sabe que o paciente não está bem e o paciente finge que não está mal. Há muitas situações dessas no país como, por exemplo, quando alguém telefona a um amigo que acabou de perder o pai ou a mãe, e ele sabe disso, a primeira pergunta que ele faz é: “... tudo bom contigo”? E, como que hipnotizado, o infeliz acaba respondendo que está tudo bem.


Existe, na verdade, uma realidade material, emocional e espiritual dentro da qual as pessoas estão vivendo, mas como elas não estão compreendendo essa mesma realidade para poderem expressá-la devidamente, elas acabam inventando uma segunda realidade absolutamente fantástica feita de slogans, chavões, topois, etc., e fazem de conta que isso é que é a verdadeira realidade e não aquilo que verdadeiramente é o objecto da sua experiência. É a isso que Robert Musil chama de “estupidez criminosa”. Quer dizer, é o indivíduo que não está compreendendo absolutamente nada do que está se passando, mas, ainda assim, se arroga ao dever prometeico de mudar a realidade. Mas isso é absolutamente impossível, até porque se você não consegue sintetizar em símbolos verbais inteligíveis o que você está percebendo num determinado tempo e num determinado espaço, nenhum exercício intelectual é possível, então, como é que você pode agir? Mas o moçambicano não... ele é como aquele cego que pega na perna direita do elefante e quando perguntado o que é o elefante, ele diz que o elefante é a perna direita. Quer dizer, estamos vivendo, metaforicamente, num mundo de cegos que guiam outros cegos rumo a vala de drenagem mais próxima. 

Não tenho dúvidas de que os moçambicanos estão colocados numa atmosfera de fingimento colectivo absolutamente formidável. E isso está tão profundamente impregnado na nossa cultura que faz com que todo nosso sistema de valores em torno do qual construímos nosso imaginário colectivo seja todo ele também feito de puro fingimento. Aliás, você não tem como separar mais a cultura moçambicana desse fenômeno do fingimento colectivo. E o pior de tudo, é que não se trata daquele fingimento poético absolutamente artístico que um poeta costuma ter como disse Fernando Pessoa quando escreveu que o poeta é um fingidor, mas se trata de algo verdadeiramente patológico. Quer dizer, chegamos a aquele ponto em que de tanto fingirmos, não somente para os outros, mas principalmente, para nós mesmos, isso desceu para o nosso inconsciente colectivo e começamos a pensar que aquilo não é mais um fingimento absolutamente inocente mas a própria realidade, como que a fazer jus a aquela técnica de Gobbels da mentira repetida que se tornou verdade.

Que o moçambicano tem um problema gravíssimo de se expressar, ninguém pode negar, até porque isso seria mais um dos nossos muitos fingimentos culturais. Veja que a maior parte dos moçambicanos vive numa casa de caniço, sem acesso a água potável, luz eléctrica, vestindo trapo, as vezes sem ter o que comer, mas quando você pergunta se está tudo bem com ele, ele diz que está tudo bem. Isso não é auto-estima. Isso não é optimismo. Isso é puro fingimento auto-hipnótico. Não obstante, quando você pergunta a um moçambicano o que uma certa coisa é, qual é o seu conceito, ele lhe responde com um exemplo, não chegando a dizer o que aquela coisa é, considerada desde o ponto de vista da sua essência. Quer dizer, o moçambicano não tem linguagem suficiente para poder dizer o que está vendo, o que está sentindo, etc. Resultado: ele se apega a imagens, a símbolos, etc., absolutamente inócuos, com uma possibilidade de representação muito ténue para poder expressar suas experiências reais, como no caso daquela mulher que não compreendendo o seu ciclo menstrual, vai ao ginecologista e diz que ela sofre de ejaculação precoce, um problema que ela não tem e nem poderia ter mesmo se quisesse tê-lo.

Há uma confusão mental muito grande na alma do povo moçambicano. É aí que começamos a questionar o papel dos nossos escritores. Eu sei que há correntes de pensamento que defendem que os políticos, mormente os deputados, numa democracia representativa , é que são a voz do povo. Outros defendem que são os Jornalistas, mas isso é absolutamente impossível. A voz do povo só pode ser uma e esta voz é a cultura e o difusor da cultura não são os políticos, os jornalistas e muito menos os fazedores da cultura mas os escritores. Sem a actividade dos escritores, nenhuma daquelas culturas antigas que precederam a história da civilização moderna seriam acessíveis. Tudo que sabemos da cultura greco-latina, tudo que sabemos da cultura babilônica, da cultura da mesopotâmia, dos judeus, dos persas, etc., é devido ao papel prestado pelos escritores. Num país, onde a literatura não consegue registar as experiências autênticas mais profundas da sociedade como dizia Saul Bellow, eu arrisco-me a dizer que, toda actividade social, económica, política, etc., é um circo de palhaços idiotas e absolutamente bobos.  Aliás, já dizia o poeta Hugo Von Hofmansthal que nada está na política de um país que não esteja primeiro na sua literatura.

Todos esses slogans, topois, chavões, etc., que os moçambicanos repetem com o automatismo  de uma máquina de fazer notas falsas, na verdade, não expressa a realidade individual de quem os repete mas uma realidade colectiva e que, por definição, é uma realidade imaginária e não a realidade individual e concrecionadora do indivíduo que está aí a fazer a vez de um papagaio humano. Por exemplo, quando um médico diz: “o nosso maior valor é a vida”, ele não quer dizer, que o valor dele, enquanto indivíduo é a vida, mas sim que o valor colectivo imaginário do grupo do qual ele faz parte é a vida. Quer dizer, todo valor colectivo só pode ser concebido sob a perspectiva de verossimilhança. Já dizia o filósofo Olavo de Carvalho que verossimilhança é aquilo que parece e parece porque você acredita juntamente com o seu grupo. Mas como diz o ditado que “parecer não é ser”, as mesmas pessoas que pertencem a esse grupo e que bradam de modo absolutamente histérico aos quatro ventos que o valor deles é a vida fazem apologia da morte ao saírem em defesa pública do aborto e da eutanásia. Qual é o problema? O problema é que esses slogans, topois, chavões, etc., simplesmente não tem passado pelo filtro da inteligência dos que os repetem. E por que não? Porque para isso eles precisariam ter linguagem suficiente que somente a cultura literária pode dar e eles não têm isso. Resultado: começam a “raciocinar” por meios de slogans e não mais por meio da confrontação dialética de hipóteses, que é próprio da natureza do método científico. E, por incrível que pareça, os “comedores e bebedores de slogans”, neste país, cometem o despautério de chamarem a si mesmos de cientistas o que não deixa de ser lamentável e uma piada absolutamente kitsch.

Agora, quem é que vai quebrar isso? Quem é que vai furar essa barreira do fingimento auto-hipnótico do povo moçambicano e devolver ao povo a sua própria voz,  o senso da linguagem, o senso das proporções, o senso de medida de maneira que não haja mais barreira entre a realidade e o povo e este consiga expressar o que está vendo, sentindo, etc.? Eu não tenho dúvidas de que isso incumbe a literatura. O moçambicano quer muito ser um povo pragmático e você vê isso muito em voga no discurso político hodierno de que os moçambicanos devem trabalhar mais, devem produzir mais. Tudo isso é muito bonito, mas a questão mais natural do mundo é que você tem que aprender a se expressar antes que você aprenda a ser pragmático. Se você tem um problema ou uma solução e você nem ao menos tem linguagem suficiente para poder descrever isso, você nem pode agir por um minuto. É como você estar  diante de uma máquina cujas técnicas de manuseio o inventor não conseguiu reduzir ao manual de instrução. Quer dizer, antes que se possa agir, aquilo que você vai fazer deve poder ser inteligível para você e até mesmo para você conseguir granjear apoio daqueles que serão seus cooperadores. E como isso acontece? Por meio da conquista da linguagem. E onde é que você vai adquirir esse domínio da linguagem para poder expressar os dramas reais que lhe apoquentam? Na literatura. 

Mas verdade seja dita e esta é que isso só acontece quando a literatura não é uma literatura de propaganda ideológica como muitos fazem em Moçambique e até mesmo escritores muito bem conhecidos, mas quando ao invés disso, a literatura faz o registo das experiências reais mais profundas da sociedade porque somente nesse tipo de literatura você tem um vislumbre de todos os mundos possíveis que vão ser de guiamento para a sociedade. Quer dizer, não pode haver nenhuma experiência que não esteja descrita na literatura de um povo porque até antes mesmo de você conhecer um povo na sua história, primeiro você tem que conhecê-lo na sua literatura. Um povo cuja literatura não consegue descrever as experiências autênticas da sociedade é um povo sem imaginação. Já dizia Einstein que tudo começa com a imaginação e se tudo que nós imaginamos é admissível como dizia o filósofo Moisés Maimónides, a ausência da imaginação já corresponde em si um solapamento a priori do sistema de valores da sociedade que é por definição o fundamento mesmo do imaginário colectivo.

Portanto, quando o moçambicano denota não ter linguagem suficiente para poder se expressar, tudo nos conduz ao corolário de que estamos perante um sintoma de que algo muito grave que está acontecendo com a nossa literatura, ou seja, a nossa literatura já não mais consegue sintetizar em símbolos verbais as experiências mais profundas da sociedade. Porque? Por um lado porque muitos escritores também não tem linguagem suficiente para sintetizar em símbolos verbais as experiências reais mais profundas, quer sejam experiências individuais do próprio escritor, quer sejam as experiências da sociedade como um todo porque para você ter linguagem suficiente para ser mais do que um simples jornalista e se tornar um escritor de verdade e não apenas um diletante, você deve ter lido no mínimo, vamos dizer, mil livros de autores diversos, para poder absorver o estilo literário de cada um. Ou seja, primeiro é preciso absorver a cultura literária de vários povos. Por outro lado, é preciso fazer aquilo que Flaubert fazia, quer dizer, pesar cada palavra antes de usá-la e isso é que vai diferenciar um escritor de um Jornalista. E, finalmente, ter passado por experiências reais profundas como os grandes escritores da literatura universal como Dostoiévski, Goethe, Cervantes, Camões, etc., ou então, ter a capacidade de vivenciar imaginativamente  experiências reais profundas sem ter que passar por elas como um narrador participante, mas apenas como um narrador observador como foi por exemplo, o caso de Dante na sua divina comédia “o inferno”, mas isso requer que você viva numa atmosfera que permite ter esse tipo de imaginação, caso contrário, a sua obra será inautêntica e sem nenhum valor cultural real.

Muito dos nossos escritores vivem num ambiente  material, emocional e espiritual absolutamente comburente de banalidades e por isso escrevem coisas banais. Você vê, por exemplo, o que se publica em termos de poesia...tudo obra de segunda mão, cópia de cópia. Porque? Porque esses poetas não tem e nunca tiveram uma experiência interior profunda e digna de registo e nem tem linguagem suficiente para registar isso. Eu arrisco-me a dizer que você não pode ser um poeta digno desse nome se você é um indivíduo se você é indivíduo incapaz de voltar para dentro de si e viver da sua identidade espiritual. Um escritor já não tem necessidade disso, ele precisa apenas se voltar para fora de si e viver da identidade social do meio em que ele se encontra por mais banal que ele seja, mas são poucos que conseguem fazer isso.

Quando você olha para a atmosfera social do país, os fenômenos dos raptos, o fenômeno da venda de órgãos humanos, o fenômeno dos linchamentos, o fenômeno dos homens catanas, etc., que são experiências reais do povo moçambicano, experiências profundas, experiências abissais, você vai se dar conta de que elas nunca foram descritas na nossa literatura. Ora, se a nossa literatura não descreve as experiências reais da nossa sociedade, o que ela tem feito? Ela só pode estar fazendo duas coisas: primeiro, propaganda ideológica; segundo, narrativa de “histórias” absolutamente inventadas e, portanto, sem nenhum fundo de realidade, ou “histórias” que são cópias de experiências que nunca tivemos e nem poderíamos ter. Ou seja, é caso para dizer que, malgrado ainda subistam moçambicanos que escrevem coisas de elevado valor,  a alta cultura literária em Moçambique está morta e muito bem sepultada no cemitério das banalidades, da inautenticidade e da propaganda ideológica sem mais nada ter dito e sem que algo mais lhe fosse perguntado.

ESCRITO POR | XADREQUE SOUSA | shathreksousa@gmail.com

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