Você
não tem mais como separar a cultura moçambicana desse fenômeno do fingimento
colectivo. E o pior de tudo, é que não se trata daquele fingimento poético
absolutamente artístico que um poeta costuma ter como disse Fernando Pessoa
quando escreveu que o poeta é um fingidor, mas se trata de algo verdadeiramente
patológico. Quer dizer, chegamos a aquele ponto em que de tanto fingirmos, não
somente para os outros, mas principalmente, para nós mesmos, isso desceu para o
nosso inconsciente colectivo e começamos a pensar que aquilo não é mais um fingimento
absolutamente inocente mas a própria realidade, como que a fazer jus a aquela
técnica de Gobbels da mentira repetida que se tornou verdade.
Existe, na verdade, uma realidade material, emocional
e espiritual dentro da qual as pessoas estão vivendo, mas como elas não estão
compreendendo essa mesma realidade para poderem expressá-la devidamente, elas
acabam inventando uma segunda realidade absolutamente fantástica feita de
slogans, chavões, topois, etc., e fazem de conta que isso é que é a verdadeira realidade
e não aquilo que verdadeiramente é o objecto da sua experiência. É a isso que
Robert Musil chama de “estupidez criminosa”. Quer dizer, é o indivíduo que não
está compreendendo absolutamente nada do que está se passando, mas, ainda
assim, se arroga ao dever prometeico de mudar a realidade. Mas isso é
absolutamente impossível, até porque se você não consegue sintetizar em símbolos
verbais inteligíveis o que você está percebendo num determinado tempo e num
determinado espaço, nenhum exercício intelectual é possível, então, como é que
você pode agir? Mas o moçambicano não... ele é como aquele cego que pega na
perna direita do elefante e quando perguntado o que é o elefante, ele diz que o
elefante é a perna direita. Quer dizer, estamos vivendo, metaforicamente, num
mundo de cegos que guiam outros cegos rumo a vala de drenagem mais próxima.
Não tenho dúvidas de que os moçambicanos estão colocados
numa atmosfera de fingimento colectivo absolutamente formidável. E isso está tão
profundamente impregnado na nossa cultura que faz com que todo nosso sistema de
valores em torno do qual construímos nosso imaginário colectivo seja todo ele
também feito de puro fingimento. Aliás, você não tem como separar mais a
cultura moçambicana desse fenômeno do fingimento colectivo. E o pior de tudo, é
que não se trata daquele fingimento poético absolutamente artístico que um
poeta costuma ter como disse Fernando Pessoa quando escreveu que o poeta é um
fingidor, mas se trata de algo verdadeiramente patológico. Quer dizer, chegamos
a aquele ponto em que de tanto fingirmos, não somente para os outros, mas
principalmente, para nós mesmos, isso desceu para o nosso inconsciente colectivo
e começamos a pensar que aquilo não é mais um fingimento absolutamente inocente
mas a própria realidade, como que a fazer jus a aquela técnica de Gobbels da
mentira repetida que se tornou verdade.
Que o moçambicano tem um problema gravíssimo de se
expressar, ninguém pode negar, até porque isso seria mais um dos nossos muitos
fingimentos culturais. Veja que a maior parte dos moçambicanos vive numa casa
de caniço, sem acesso a água potável, luz eléctrica, vestindo trapo, as vezes sem
ter o que comer, mas quando você pergunta se está tudo bem com ele, ele diz que
está tudo bem. Isso não é auto-estima. Isso não é optimismo. Isso é puro
fingimento auto-hipnótico. Não obstante, quando você pergunta a um moçambicano
o que uma certa coisa é, qual é o seu conceito, ele lhe responde com um
exemplo, não chegando a dizer o que aquela coisa é, considerada desde o ponto
de vista da sua essência. Quer dizer, o moçambicano não tem linguagem
suficiente para poder dizer o que está vendo, o que está sentindo, etc.
Resultado: ele se apega a imagens, a símbolos, etc., absolutamente inócuos, com
uma possibilidade de representação muito ténue para poder expressar suas
experiências reais, como no caso daquela mulher que não compreendendo o seu ciclo
menstrual, vai ao ginecologista e diz que ela sofre de ejaculação precoce, um
problema que ela não tem e nem poderia ter mesmo se quisesse tê-lo.
Há uma confusão mental muito grande na alma do povo
moçambicano. É aí que começamos a questionar o papel dos nossos escritores. Eu sei
que há correntes de pensamento que defendem que os políticos, mormente os
deputados, numa democracia representativa , é que são a voz do povo. Outros
defendem que são os Jornalistas, mas isso é absolutamente impossível. A voz do
povo só pode ser uma e esta voz é a cultura e o difusor da cultura não são os
políticos, os jornalistas e muito menos os fazedores da cultura mas os
escritores. Sem a actividade dos escritores, nenhuma daquelas culturas antigas
que precederam a história da civilização moderna seriam acessíveis. Tudo que
sabemos da cultura greco-latina, tudo que sabemos da cultura babilônica, da
cultura da mesopotâmia, dos judeus, dos persas, etc., é devido ao papel
prestado pelos escritores. Num país, onde a literatura não consegue registar as
experiências autênticas mais profundas da sociedade como dizia Saul Bellow, eu arrisco-me
a dizer que, toda actividade social, económica, política, etc., é um circo de
palhaços idiotas e absolutamente bobos. Aliás,
já dizia o poeta Hugo Von Hofmansthal que nada está na política de um país que
não esteja primeiro na sua literatura.
Todos esses slogans, topois, chavões, etc., que os
moçambicanos repetem com o automatismo de
uma máquina de fazer notas falsas, na verdade, não expressa a realidade
individual de quem os repete mas uma realidade colectiva e que, por definição, é
uma realidade imaginária e não a realidade individual e concrecionadora do indivíduo
que está aí a fazer a vez de um papagaio humano. Por exemplo, quando um médico
diz: “o nosso maior valor é a vida”, ele não quer dizer, que o valor dele,
enquanto indivíduo é a vida, mas sim que o valor colectivo imaginário do grupo
do qual ele faz parte é a vida. Quer dizer, todo valor colectivo só pode ser
concebido sob a perspectiva de verossimilhança. Já dizia o filósofo Olavo de
Carvalho que verossimilhança é aquilo que parece e parece porque você acredita
juntamente com o seu grupo. Mas como diz o ditado que “parecer não é ser”, as
mesmas pessoas que pertencem a esse grupo e que bradam de modo absolutamente
histérico aos quatro ventos que o valor deles é a vida fazem apologia da morte
ao saírem em defesa pública do aborto e da eutanásia. Qual é o problema? O
problema é que esses slogans, topois, chavões, etc., simplesmente não tem
passado pelo filtro da inteligência dos que os repetem. E por que não? Porque para
isso eles precisariam ter linguagem suficiente que somente a cultura literária
pode dar e eles não têm isso. Resultado: começam a “raciocinar” por meios de
slogans e não mais por meio da confrontação dialética de hipóteses, que é
próprio da natureza do método científico. E, por incrível que pareça, os
“comedores e bebedores de slogans”, neste país, cometem o despautério de chamarem
a si mesmos de cientistas o que não deixa de ser lamentável e uma piada
absolutamente kitsch.
Agora, quem é que vai quebrar isso? Quem é que vai
furar essa barreira do fingimento auto-hipnótico do povo moçambicano e devolver
ao povo a sua própria voz, o senso da
linguagem, o senso das proporções, o senso de medida de maneira que não haja
mais barreira entre a realidade e o povo e este consiga expressar o que está
vendo, sentindo, etc.? Eu não tenho dúvidas de que isso incumbe a literatura. O
moçambicano quer muito ser um povo pragmático e você vê isso muito em voga no
discurso político hodierno de que os moçambicanos devem trabalhar mais, devem
produzir mais. Tudo isso é muito bonito, mas a questão mais natural do mundo é que
você tem que aprender a se expressar antes que você aprenda a ser pragmático.
Se você tem um problema ou uma solução e você nem ao menos tem linguagem
suficiente para poder descrever isso, você nem pode agir por um minuto. É como
você estar diante de uma máquina cujas
técnicas de manuseio o inventor não conseguiu reduzir ao manual de instrução. Quer
dizer, antes que se possa agir, aquilo que você vai fazer deve poder ser inteligível
para você e até mesmo para você conseguir granjear apoio daqueles que serão
seus cooperadores. E como isso acontece? Por meio da conquista da linguagem. E
onde é que você vai adquirir esse domínio da linguagem para poder expressar os
dramas reais que lhe apoquentam? Na literatura.
Mas verdade seja dita e esta é
que isso só acontece quando a literatura não é uma literatura de propaganda
ideológica como muitos fazem em Moçambique e até mesmo escritores muito bem
conhecidos, mas quando ao invés disso, a literatura faz o registo das experiências
reais mais profundas da sociedade porque somente nesse tipo de literatura você
tem um vislumbre de todos os mundos possíveis que vão ser de guiamento para a
sociedade. Quer dizer, não pode haver nenhuma experiência que não esteja
descrita na literatura de um povo porque até antes mesmo de você conhecer um
povo na sua história, primeiro você tem que conhecê-lo na sua literatura. Um
povo cuja literatura não consegue descrever as experiências autênticas da
sociedade é um povo sem imaginação. Já dizia Einstein que tudo começa com a
imaginação e se tudo que nós imaginamos é admissível como dizia o filósofo
Moisés Maimónides, a ausência da imaginação já corresponde em si um solapamento
a priori do sistema de valores da
sociedade que é por definição o fundamento mesmo do imaginário colectivo.
Portanto, quando o moçambicano denota não ter
linguagem suficiente para poder se expressar, tudo nos conduz ao corolário de
que estamos perante um sintoma de que algo muito grave que está acontecendo com
a nossa literatura, ou seja, a nossa literatura já não mais consegue sintetizar
em símbolos verbais as experiências mais profundas da sociedade. Porque? Por um
lado porque muitos escritores também não tem linguagem suficiente para
sintetizar em símbolos verbais as experiências reais mais profundas, quer sejam
experiências individuais do próprio escritor, quer sejam as experiências da
sociedade como um todo porque para você ter linguagem suficiente para ser mais
do que um simples jornalista e se tornar um escritor de verdade e não apenas um
diletante, você deve ter lido no mínimo, vamos dizer, mil livros de autores
diversos, para poder absorver o estilo literário de cada um. Ou seja, primeiro
é preciso absorver a cultura literária de vários povos. Por outro lado, é
preciso fazer aquilo que Flaubert fazia, quer dizer, pesar cada palavra antes
de usá-la e isso é que vai diferenciar um escritor de um Jornalista. E, finalmente,
ter passado por experiências reais profundas como os grandes escritores da
literatura universal como Dostoiévski, Goethe, Cervantes, Camões, etc., ou então,
ter a capacidade de vivenciar imaginativamente experiências reais profundas sem ter que
passar por elas como um narrador participante, mas apenas como um narrador
observador como foi por exemplo, o caso de Dante na sua divina comédia “o
inferno”, mas isso requer que você viva numa atmosfera que permite ter esse
tipo de imaginação, caso contrário, a sua obra será inautêntica e sem nenhum
valor cultural real.
Muito dos nossos escritores vivem num ambiente material, emocional e espiritual absolutamente
comburente de banalidades e por isso escrevem coisas banais. Você vê, por
exemplo, o que se publica em termos de poesia...tudo obra de segunda mão, cópia
de cópia. Porque? Porque esses poetas não tem e nunca tiveram uma experiência
interior profunda e digna de registo e nem tem linguagem suficiente para
registar isso. Eu arrisco-me a dizer que você não pode ser um poeta digno desse
nome se você é um indivíduo se você é indivíduo incapaz de voltar para dentro
de si e viver da sua identidade espiritual. Um escritor já não tem necessidade
disso, ele precisa apenas se voltar para fora de si e viver da identidade social
do meio em que ele se encontra por mais banal que ele seja, mas são poucos que
conseguem fazer isso.
Quando você olha para a atmosfera social do país, os
fenômenos dos raptos, o fenômeno da venda de órgãos humanos, o fenômeno dos
linchamentos, o fenômeno dos homens catanas, etc., que são experiências reais
do povo moçambicano, experiências profundas, experiências abissais, você vai se
dar conta de que elas nunca foram descritas na nossa literatura. Ora, se a
nossa literatura não descreve as experiências reais da nossa sociedade, o que
ela tem feito? Ela só pode estar fazendo duas coisas: primeiro, propaganda
ideológica; segundo, narrativa de “histórias” absolutamente inventadas e,
portanto, sem nenhum fundo de realidade, ou “histórias” que são cópias de
experiências que nunca tivemos e nem poderíamos ter. Ou seja, é caso para dizer
que, malgrado ainda subistam moçambicanos que escrevem coisas de elevado valor,
a alta cultura literária em Moçambique
está morta e muito bem sepultada no cemitério das banalidades, da
inautenticidade e da propaganda ideológica sem mais nada ter dito e sem que
algo mais lhe fosse perguntado.
ESCRITO POR | XADREQUE
SOUSA | shathreksousa@gmail.com
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