domingo, 27 de novembro de 2016

O Livro e a realidade

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Não é verdade que o livro é uma coisa e a realidade é outra. Muito pelo contrário, o livro é a condensação da realidade em símbolos verbais e essa condensação dá-se dentro da própria realidade. Isso é o que se chama conhecimento, aquilo que os clássicos gregos entendiam como conhecimento, ou seja, a representação da realidade por meio de signos linguísticos.


Eu estive conversando com alguém e de repente a pessoa diz: “ah… mas isso só acontece nos livros, não na vida prática”. Agora, se você for a examinar isso muito mais profundamente, você irá chegar a conclusão de que isso que esse indivíduo disse é o que toda gente diz. Quer dizer, não é uma idéia dele proprio, ou seja, não expressa a sua percepção real das coisas, não expressa suas impressões autênticas, mas a percepção colectiva. Então, a pessoa, de vez que todo mundo está repetindo aquilo, a pessoa acredita ou acaba acreditando que aquilo é que é a realidade. Isso é o que se chama de critério de verossimilhança. Verossimilhança é aquilo que disse o filósofo Olavo de Carvalho, ou seja, “verossimilhança é aquilo que parece. Parece porque é o que as pessoas dizem. Você acredita junto com o seu grupo”.

Isso é absolutamente incrível. Quer dizer, você ver um indivíduo que tem curso superior, mas ainda não aprendeu a raciocinar com a própria cabeça, mas se contenta em ficar repetindo slogans, topois, etc.

Outra coisa igualmente grave é que uma pessoa que pensa assim, não sabe o que é cultura e muito menos cultura superior. Porque veja, os livros o que fazem é sintetizar em símbolos verbais as experiências reais mais
profundas do ser humano. É claro que há livros cujas as “histórias” são todas inventadas. Eles retratam coisas que nunca aconteceram em lado nenhum. Mas o livro mesmo é a condensação das experiências humanas por meio de símbolos linguísticos.

Então, quando um indivíduo diz que uma coisa é o livro e outra coisa é a realidade, ele não sabe, absolutamente, do que está falando.

Veja, todos nós, por mais genial que o indivíduo seja, todos nós, nascemos pequenos e burros. Mas a burrice pode ser vencida até certo ponto. Você pode vencer a sua burrice e se tornar uma pessoa inteligente. Aristóteles dizia que a inteligência tem limites. De facto. Você se aprofunda numa certa questão e você vai, vai, vai até chegar num certo ponto em que a sua inteligência não avança mais e você pode até ter um esgotamento nervoso como aconteceu com o Sir Isaac Newton, Max Weber e outros tantos grandes homens de ciência.

Leibniz disse que a diferença entre o homem e o animal é que o animal tem consciência ao passo que o homem tem mais do que isso. O homem tem autoconsciência. Se bem que, para Zubiri, a diferença entre o homem e o animal é total. Ora, o que é autoconsciência? Numa única expressão, autoconsciência condensa-se na cultura superior. Aliás, foi Roger Scruton que disse que a cultura superior é a autoconsciência de um povo.

Agora, onde está essa autoconsciência? Na cultura superior e a literatura é uma das suas manifestações mais salientes. Não somente a literatura, mas em tudo que de mais elevado existe que tenha sido criado pelo espírito humano.

Imagine que cada ser humano fosse um animal no sentido zoológico da coisa. A cultura seria impossível e a alta cultura mais ainda. Cada ser humano teria que aprender tudo a partir do zero. Mas é a escrita que permite registar, que permite condensar experiências humanas em símbolos artísticos. O que é um símbolo? É aquilo que disse Susane K. Langer: “uma matriz de intelecções possíveis”.

Sem literatura de imaginação, nenhum futuro é admissível como diria Maimônides. Já dizia George Orwell que “quem controla o futuro controla o passado e quem controla o passado controla o presente”. Esse controlo é feito através da imaginação. O que você imagina hoje é o que você será amanhã.

 Agora, se você não está fazendo nada para povoar seu imaginário, você acaba ficando evidentemente como um cego em meio de tiroteiro, levando pancada de todos os lados, sem saber o que fazer e aonde ir de modo a ter segurança.
Não é verdade que o livro é uma coisa e a realidade é outra. Muito pelo contrário, o livro é a condensação da realidade em símbolos verbais e essa condensação dá-se dentro da própria realidade. Isso é o que se chama conhecimento, aquilo que os clássicos gregos entendiam como conhecimento, ou seja, a representação da realidade por meio de signos linguísticos.

Agora não. As pessoas... veja por exemplo, o caso de adultério, o caso da traição. Foram casos amplamente descrito na literatura ocidental do século XIX. Mas ainda assim, algumas pessoas têm a ilusão histérica de que aquilo nunca vai acontecer com elas. “Eu nunca vou ser traído, ou eu nunca vou trair...”. Dizem elas. Aye?! Mas quem é que lhe dá essa segurança? Por ventura, Cristo Jesus desceu do céu e disse para você que você nunca vai ser traído? Elas dizem: “Ah, mas eu acredito que nunca vou ser traído. Deus não vai permitir...”. Quer dizer, você está logo aí cometendo dois pecados, primeiro, o pecado da soberba e segundo pecado da presunção. Não somente isso, se alguma traição já aconteceu neste mundo, logo, sucede que mais uma traição é possível e lutar contra isso é lutar contra a própria estrutura da realidade.

Agora, se você está vivendo fora da realidade, aonde é que você está vivendo? Você está vivendo dentro daquilo que Robert Musil chamou de segunda realidade. O que é que é uma segunda realidade? É uma realidade feita apenas de palavras sem nada de substancial por detrás delas o que acaba conduzindo o indivíduo para quilo o filósofo Olavo de Carvalho chamou de “paralaxe cognitiva” que ocorre quando o eixo teórico daquilo que o indivíduo está dizendo está totalmente deslocado do eixo da sua experiência real.

Veja o caso de Karl Marx, quando ele dizia que somente o proletário poderia ter uma visão objectiva da história mas quando você lê Marx, você vê que ele jura de pés junto que ele era o primeiro homem a ter uma visão objectiva da história só que acontece que Marx não era proletário, ele era um burguês. Marx era filho de um advogado judeu, um burguês e durante a sua vida toda foi sustentado por um capitalista, o seu cão de guarda, o Frederich Engels. E existem tantos outros exemplos de paralaxe cognitiva.

Se os livros não espelham a realidade, o que é a espelha? Você pode dizer: “ah, mas a realidade só pode ser apreendida por meio da experiência directa”. Ora, você pode ter centenas de milhares de experiência ao longo de toda a sua vida e ainda assim isso não lhe ser útil, ou seja, você pode continuar a cair no mesmo erro a despeito de toda sua experiência? Porque? Porque você não consegue expressar a experiência que você teve, você não tem linguagem suficiente para tal. Ou seja, às vezes, as experiências são tão profundas que os indivíduos humanos não conseguem expressá-las. É aí em que entra o escritor. Porque esse é o papel do escritor. Pegar na experiência real, retrabalhá-la simbolicamente, artisticamente e torná-la expressiva, tanto é que, não raras vezes, você lê um livro e você diz: “meu Deus do céu, ele está falando de mim”. Pelo menos foi com essa sensação que eu fiquei quando li a obra máxima daquele grande escritor brasileiro, o Machado de Assis intitulado: ” Memórias póstumas de Brás Cubas”. Quer dizer, você não sai ileso disso.

Agora, o problema das pessoas é que não sabem ler um romance, não sabem ler um texto poético e muita das vezes, até os próprios romancistas não sabem ler romances. Tanto é que quando ele se depara com as experiências que ele mesmo registou no seu livro, ele não sabe lidar com aquilo e, neste caso, estamos perante um diletante. Por outras palavras, estamos perante alguém que só escreve para se divertir, mas não para se orientar na realidade. Não digo que isso seja de todo mau, mas quando você supera esse estágio, então, é aí que você é um filósofo e não um mero escritor de romances.

Quando você lê um romance, por exemplo, você, para além da leitura, há um outro exercício complementar que tem que fazer. Você tem que procurar vivenciar imaginativamente aquela experiência que foi narrada ali naquele livro ou, então, um livro será apenas um livro para você, ou seja, ele não terá nenhuma validade para você para além daquilo que ele é como signo e é preciso observar para além do signo porque o sentido de uma coisa não é a coisa em si, mas aquilo para o qual ela tende.

ESCRITO POR | XADREQUE SOUSA | shathreksousa@gmail.com

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