Não é verdade que o livro é uma coisa e a realidade é
outra. Muito pelo contrário, o livro é a condensação da realidade em símbolos
verbais e essa condensação dá-se dentro da própria realidade. Isso é o que se
chama conhecimento, aquilo que os clássicos gregos entendiam como conhecimento,
ou seja, a representação da realidade por meio de signos linguísticos.
Eu estive conversando
com alguém e de repente a pessoa diz: “ah… mas isso só acontece nos livros, não
na vida prática”. Agora, se você for a examinar isso muito mais profundamente,
você irá chegar a conclusão de que isso que esse indivíduo disse é o que toda
gente diz. Quer dizer, não é uma idéia dele proprio, ou seja, não expressa a
sua percepção real das coisas, não expressa suas impressões autênticas, mas a
percepção colectiva. Então, a pessoa, de vez que todo mundo está repetindo
aquilo, a pessoa acredita ou acaba acreditando que aquilo é que é a realidade. Isso
é o que se chama de critério de verossimilhança. Verossimilhança é aquilo que
disse o filósofo Olavo de Carvalho, ou seja, “verossimilhança é aquilo que
parece. Parece porque é o que as pessoas dizem. Você acredita junto com o seu
grupo”.
Isso é absolutamente
incrível. Quer dizer, você ver um indivíduo que tem curso superior, mas ainda
não aprendeu a raciocinar com a própria cabeça, mas se contenta em ficar
repetindo slogans, topois, etc.
Outra coisa igualmente
grave é que uma pessoa que pensa assim, não sabe o que é cultura e muito menos
cultura superior. Porque veja, os livros o que fazem é sintetizar em símbolos
verbais as experiências reais mais
profundas do ser
humano. É claro que há livros cujas as “histórias” são todas inventadas. Eles
retratam coisas que nunca aconteceram em lado nenhum. Mas o livro mesmo é a
condensação das experiências humanas por meio de símbolos linguísticos.
Então, quando um indivíduo
diz que uma coisa é o livro e outra coisa é a realidade, ele não sabe,
absolutamente, do que está falando.
Veja, todos nós, por
mais genial que o indivíduo seja, todos nós, nascemos pequenos e burros. Mas a
burrice pode ser vencida até certo ponto. Você pode vencer a sua burrice e se
tornar uma pessoa inteligente. Aristóteles dizia que a inteligência tem
limites. De facto. Você se aprofunda numa certa questão e você vai, vai, vai
até chegar num certo ponto em que a sua inteligência não avança mais e você
pode até ter um esgotamento nervoso como aconteceu com o Sir Isaac Newton, Max
Weber e outros tantos grandes homens de ciência.
Leibniz disse que a
diferença entre o homem e o animal é que o animal tem consciência ao passo que
o homem tem mais do que isso. O homem tem autoconsciência. Se bem que, para
Zubiri, a diferença entre o homem e o animal é total. Ora, o que é autoconsciência?
Numa única expressão, autoconsciência condensa-se na cultura superior. Aliás,
foi Roger Scruton que disse que a cultura superior é a autoconsciência de um
povo.
Agora, onde está essa autoconsciência?
Na cultura superior e a literatura é uma das suas manifestações mais salientes.
Não somente a literatura, mas em tudo que de mais elevado existe que tenha sido
criado pelo espírito humano.
Imagine que cada ser
humano fosse um animal no sentido zoológico da coisa. A cultura seria impossível
e a alta cultura mais ainda. Cada ser humano teria que aprender tudo a partir
do zero. Mas é a escrita que permite registar, que permite condensar experiências
humanas em símbolos artísticos. O que é um símbolo? É aquilo que disse Susane
K. Langer: “uma matriz de intelecções possíveis”.
Sem literatura de
imaginação, nenhum futuro é admissível como diria Maimônides. Já dizia George Orwell
que “quem controla o futuro controla o passado e quem controla o passado
controla o presente”. Esse controlo é feito através da imaginação. O que você
imagina hoje é o que você será amanhã.
Agora, se você não está fazendo nada
para povoar seu imaginário, você acaba ficando evidentemente como um cego em
meio de tiroteiro, levando pancada de todos os lados, sem saber o que fazer e
aonde ir de modo a ter segurança.
Não é verdade que o
livro é uma coisa e a realidade é outra. Muito pelo contrário, o livro é a
condensação da realidade em símbolos verbais e essa condensação dá-se dentro da
própria realidade. Isso é o que se chama conhecimento, aquilo que os clássicos
gregos entendiam como conhecimento, ou seja, a representação da realidade por
meio de signos linguísticos.
Agora não. As
pessoas... veja por exemplo, o caso de adultério, o caso da traição. Foram
casos amplamente descrito na literatura ocidental do século XIX. Mas ainda
assim, algumas pessoas têm a ilusão histérica de que aquilo nunca vai acontecer
com elas. “Eu nunca vou ser traído, ou eu nunca vou trair...”. Dizem elas. Aye?! Mas quem é que lhe dá essa segurança? Por ventura, Cristo Jesus desceu do céu e
disse para você que você nunca vai ser traído? Elas dizem: “Ah, mas eu acredito
que nunca vou ser traído. Deus não vai permitir...”. Quer dizer, você está logo
aí cometendo dois pecados, primeiro, o pecado da soberba e segundo pecado da
presunção. Não somente isso, se alguma traição já aconteceu neste mundo, logo,
sucede que mais uma traição é possível e lutar contra isso é lutar contra a
própria estrutura da realidade.
Agora, se você está
vivendo fora da realidade, aonde é que você está vivendo? Você está vivendo
dentro daquilo que Robert Musil chamou de segunda realidade. O que é que é uma
segunda realidade? É uma realidade feita apenas de palavras sem nada de
substancial por detrás delas o que acaba conduzindo o indivíduo para quilo o
filósofo Olavo de Carvalho chamou de “paralaxe cognitiva” que ocorre quando o
eixo teórico daquilo que o indivíduo está dizendo está totalmente deslocado do
eixo da sua experiência real.
Veja o caso de Karl
Marx, quando ele dizia que somente o proletário poderia ter uma visão objectiva
da história mas quando você lê Marx, você vê que ele jura de pés junto que ele era
o primeiro homem a ter uma visão objectiva da história só que acontece que Marx
não era proletário, ele era um burguês. Marx era filho de um advogado judeu, um
burguês e durante a sua vida toda foi sustentado por um capitalista, o seu cão
de guarda, o Frederich Engels. E existem tantos outros exemplos de paralaxe
cognitiva.
Se os livros não
espelham a realidade, o que é a espelha? Você pode dizer: “ah, mas a realidade
só pode ser apreendida por meio da experiência directa”. Ora, você pode ter
centenas de milhares de experiência ao longo de toda a sua vida e ainda assim
isso não lhe ser útil, ou seja, você pode continuar a cair no mesmo erro a
despeito de toda sua experiência? Porque? Porque você não consegue expressar a
experiência que você teve, você não tem linguagem suficiente para tal. Ou seja,
às vezes, as experiências são tão profundas que os indivíduos humanos não conseguem
expressá-las. É aí em que entra o escritor. Porque esse é o papel do escritor.
Pegar na experiência real, retrabalhá-la simbolicamente, artisticamente e torná-la
expressiva, tanto é que, não raras vezes, você lê um livro e você diz: “meu
Deus do céu, ele está falando de mim”. Pelo menos foi com essa sensação que eu
fiquei quando li a obra máxima daquele grande escritor brasileiro, o Machado de
Assis intitulado: ” Memórias póstumas de Brás Cubas”. Quer dizer, você não sai
ileso disso.
Agora, o problema das
pessoas é que não sabem ler um romance, não sabem ler um texto poético e muita
das vezes, até os próprios romancistas não sabem ler romances. Tanto é que quando
ele se depara com as experiências que ele mesmo registou no seu livro, ele não
sabe lidar com aquilo e, neste caso, estamos perante um diletante. Por outras
palavras, estamos perante alguém que só escreve para se divertir, mas não para se
orientar na realidade. Não digo que isso seja de todo mau, mas quando você
supera esse estágio, então, é aí que você é um filósofo e não um mero escritor
de romances.
Quando você lê um
romance, por exemplo, você, para além da leitura, há um outro exercício complementar
que tem que fazer. Você tem que procurar vivenciar imaginativamente aquela
experiência que foi narrada ali naquele livro ou, então, um livro será apenas
um livro para você, ou seja, ele não terá nenhuma validade para você para além
daquilo que ele é como signo e é preciso observar para além do signo porque o
sentido de uma coisa não é a coisa em si, mas aquilo para o qual ela tende.
Nenhum comentário:
Postar um comentário