“Grito negro” também foi usada por Noémia de
Sousa como título de um de seus poemas. Um grito negro pode ser uma impressão
que se reporta a um sentimento de angústia expresso pelo poeta.
Eu sou carvão!
Aqui vemos que o poeta diz que ele é carvão. Tomada
na sua acepção lógica, o EU é sujeito, SOU é cópula e CARVÃO é predicado. Não é
preciso ser muito inteligente para perceber que carvão, neste caso, apesar de
ser um predicado que convêm ao EU do poeta, não o convêm analiticamente mas sinteticamente.
Esse juízo nos remete a um problema ontológico muito
grande que é o problema do ser. Não o ser tomado junto com seus acidentes mas o
ser tomado em si mesmo, ou seja, o ser enquanto SER.
O poeta não pode ser carvão. Isso é apenas uma
impressão que ele teve e que ele está procurando expressar. Portanto, ele é
carvão acidentalmente. Ele é carvão no sentido em que há alguma semelhança
entre o seu EU e o carvão. Seu EU imita (metexis) o carvão.
Qualquer estudante de psicologia sabe que o eu está
no centro do psiquismo humano. Ter um EU é ter uma centralidade psíquica.
E tu arrancas-me brutalmente do chão
A expressão “arrancar” já subentende brutalidade.
Por conseguinte, arrancar brutalmente já é uma redundância. E essa redundância
não é debalde porque a violência é redundante. Ela se perpetua por meio de uma repetição
compulsiva de si mesmo. Sem a repetição formal e universal da violência ela
deixa de ser como um facto sociológico se fixando para sempre no instante
histórico irrepetível.
O carvão é extraído do “chão”, do subsolo. O EU do
poeta, a sua centralidade psíquica, também é arrancada do chão. O chão tomado
no seu sentido esotérico se opõe, se ob
põe, a aquilo que está acima. Sendo assim, ele nada mais é do que o
psiquismo inferior. Porém, olhando as coisas por esta perspectiva daria a
impressão dessa atitude ser ela positiva e não negativa o que não me parece que
seja a intenção do poeta.
Há uma expressão popular que as pessoas usam bastante
que é “ter os pés no chão”. Isso faria o chão ser símbolo daquilo que lhe dá
firmeza, segurança. O carvão pertence ao chão. O EU também pertence ao seu chão
que é, aqui, para o poeta, a sua pátria.
E fazes-me tua mina
Quer dizer, agora, a mina já não é uma simples mina
mas agora tem um valor utilitário. Um valor utilitário é aquele que é
perseguido pela economia.
O poeta, aqui, lamenta que agora ele tem apenas um
valor económico de mera mercadoria, que é um valor bivalente: útil e inútil, e
que exista somente para satisfazer as necessidades de produção.
Há vários tipos humanos, mormente quatro, segundo Mário
Ferreira dos Santos, a saber: 1) o tipo teocrático, 2) o tipo aristocrático, 3)
o tipo do empresário utilitário e 4) o tipo do servidor.
O patrão neste poema é o tipo humano do empresário
utilitário e o poeta o tipo humano do servidor que é o tipo humano mais baixo.
Patrão!
II
Eu sou carvão
E tu acendes-me, patrão
Para te servir eternamente como força motriz
Mas eternamente não
Patrão!
O carvão tem que ser aceso para por a locomotiva em
marcha. Ele tem que ser aceso na fundição do aço, etc. Acender pode ter vários
sentidos. Fala-se em acender a ira.
O poeta fala que o patrão acende-lhe para que ele possa
servi-lo…quer dizer, o carvão é aceso para servir como força motriz. O poeta,
porém, nega que vai servir eternamente. Isso é como uma profecia auto-realizável.
Ninguém serve a ninguém eternamente. Pode servir a vida inteira mas não
eternamente porque pelo menos quando morre deixa de ser servo. Portanto, o que
o poeta está falando é uma hipérbole monstruosa.
III
Eu sou carvão!
E tenho que arder, sim
E queimar tudo com a força da minha combustão.
Esse arder, aqui, não tem nada a ver com o arder que
a que ele se refere na estrofe anterior. O queimar da estrofe anterior era o
queimar de servidão mas o queimar aqui já é um queimar de revolta e de luta mas
acaba sendo uma espécie de revolta irracional porque fala em “queimar tudo com
a força da minha combustão”. Se vai queimar tudo, isso inclui a si próprio numa
espécie de suicídio. É claro que queimar tudo, esse tudo não é um tudo lógico e
ontológico mas um tudo gramático, é uma hipérbole, portanto, um queimar tomado
como figura de linguagem, isto é como uma impressão tida pelo poeta.
IV
Eu sou carvão!
Tenho que arder na exploração
Isso é uma repetição do que já comentamos acima
quando falamos do queimar como servidão e queimar como revolta e luta. O poeta
arde quando é explorado. Ele também arde quando se revolta e luta.
Arder até as cinzas da maldição
Arder vivo como alcatrão, meu irmão
Até não ser mais tua mina
Patrão!
O poeta aqui encara a libertação da sua servidão e exploração
apenas sob o ângulo da violência. Me recordo agora de uma frase de Donald
Rumsfeld que diz: a fraqueza atrai a agressividade. Quer dizer, se você se faz
de fraco diante dos seus inimigos eles vão se tornar mais poderosos sobre você.
Se temos que nos fazer fracos como diz S.Paulo, apóstolo, temos que sê-lo para
com os fracos e não para com os fortes.
V
Eu sou carvão!
Tenho que arder
E queimar tudo com o fogo da minha combustão.
VI
Sim!
Eu serei o teu carvão
Patrão!
Essa expressão, eu serei o teu carvão é irónica. É obvio
que o poeta queria dizer o contrário do que ele disse, porém isso está
subentendido nesse verso. O que ele quer dizer é que ele não será o carvão do
seu patrão, ou seja, ele não aceitará mais a exploração mas que vai se
revoltar.
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