domingo, 19 de março de 2017

Do fundamento do conhecimento objectivo

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Por meio da dúvida universal, Descartes chega ao ego cogito como fundamento do conhecimento. Contudo, para Descartes o ego cogito que é o que Husserl chamou de “consciência transcendental” não é suficiente por si para fundar o conhecimento de modo que ele apela para Deus.

Diferentemente de Descartes que depois da descoberta do eu transcendental retorna ao mundo dos objectos sensíveis, Husserl não sai da consciência transcendental. Isso é que é fenomenologia, o mundo da vida, o lebenswelt. De modo que a fenomenologia não é dedutiva mas sendo a modalidade de aparecimento dos entes ela é descritiva porque ela é intuitiva e chega a ser um ascetismo intelectual.

Acabei de ler uma colectânea de prelecções do filósofo Olavo de Carvalho de 1993 publicada por seus alunos sob o título “Edmund Husserl contra o psicologismo” transcrito da fita magnética. O material não foi corrigido e contém muitos erros de gramática, imprecisões, gaps, contudo, ainda assim, é um material muito rico, muito bom mesmo. Eu só acho que em vez de terem dado o título que deram àquela colectânea, se calhar fosse mais apropriado chamá-la de “ Husserl e o fundamento do conhecimento” ou “Husserl e a consciência transcendental” porque eu acho que é sobre isso que, no fundo, aquele material trata e que a crítica do psicologismo é apenas um pretexto, uma elaboração psicológica de uma causa, digo, um motivo, para se chegar a consciência transcendental.

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Os homens de ciência imaginam que o conhecimento científico, digo, um conhecimento obtido metodologicamente por meio da observação e experimentação controladas em laboratório, é o único conhecimento válido. Contudo, eles nunca param para fazer a seguinte pergunta: “qual é o fundamento do conhecimento objectivo”? Essa pergunta é importante porque se o conhecimento objectivo não tem nenhum fundamento, então, segue-se que ele não é possível.

É por não encontrar nenhum fundamento para o conhecimento que os cépticos dizem que nenhum conhecimento é possível. Os cientistas também são cépticos. Porém, seu cepticismo não é universal mas apenas particular ou seja, eles acreditam apenas na possibilidade do conhecimento científico. Mas qual é o fundamento disso?

Veja, a possibilidade e a impossibilidade são categorias pensamentais, do nosso pensamento, assim como a unidade, a realidade, a quantidade, a qualidade, o nexo de causa-efeito, a negação, etc. Agora, nós sabemos que quando falamos de pensamento, então, temos a lógica, como a arte do pensamento correcto que vai nos dar a coerência do raciocínio e validar a sua conclusão. Deste modo, somente é possível o ente que tem coerência lógica interna e é impossível o ente que não tem coerência lógica interna. Por outras palavras, se o conhecimento científico é possível é porque ele tem coerência lógica interna. Então, estamos dizendo que o fundamento do conhecimento científico e de todo e qualquer conhecimento é a lógica.

Dizer que o conhecimento objectivo se funda na lógica é suficiente? De modo nenhum porque aí surge uma outra questão, ei-la: “qual é o fundamento da lógica”? Um dos fundadores da sociologia, o francês Emilie Durkheim, diz que a lógica é uma construção social. Contudo, quando você examina a lógica e a aritmética elementar você chega a conclusão de que elas são idênticas. Deste modo, você dizer que a lógica é uma construção social é idêntico a você dizer que a aritmética elementar é uma construção social, ou seja, 2+2=4 é uma construção social. Ora, é preciso ser muito pueril para acreditar numa coisa dessas porque isso seria tomar um juízo sintético no lugar de um juízo analítico e portanto à priori.

Num mundo dominado pelo sócio-construtivismo, a tendência normal dos seres humanos é abusar da quota de burrice permitida a um ser humano normal. Tanto isso é assim que no contexto do mundo moderno em que a ciência ignora totalmente o seu fundamento ser burro é uma necessidade metafísica da mais alta transcendência. Ou como alguém disse: “o teorema de Pitágoras é um teorema machista porque Pitágoras antes de enunciá-la não consultou as mulheres”. Também podemos dizer que a equação de Einstein E=m.c2 é uma equação racista porque Einstein não consultou os negros.

Ora, 2+2=4 independe da existência de qualquer sociedade, aliás, independe até mesmo da existência de um 2 ou de um 4, é a isso que se chama mathese megiste. A lógica mexe com o mundo das possibilidades e não com o mundo dos factos. Os números são entes de razão, a lógica trata dos entes de razão e não dos entes reais, de res, coisas ou objectos da nossa experiência. Você pode dizer: “tudo bem. Mas isso é apenas lógica formal”. Veja, o que é lógica material? Quando você faz uma indução isso é uma lógica material? De modo nenhum. A indução nem se quer tem que ver com a lógica. A lógica material é o que chamamos de metodologia. O que é metodologia? É aquilo que Francis Bacon, no século XVI, chamou de “organun”. Aliás, Novo Organum é o título da maior obra de Bacon. O que é um organum? É um instrumento. Então, partindo daquilo que é formalmente lógico você vai deduzindo para a técnica, ou seja, para aquilo que é normativo.

Então, vemos aqui que a proposição de que a lógica provêm da sociologia encerra um juízo falso. Aliás, mesmo que a lógica viesse da sociologia, fosse uma construção social, você não poderia estabelecer um nexo causal mas apenas uma implicação lógica mas também, neste caso, isso seria um bicho que se morde pela sua própria cauda. Ou seja, a sociologia é uma ciência baseada em dados sensíveis como qualquer outra ciência. É claro que você pode objectar dizendo que o método daquilo que Descartes chamou de res cogitan que são as ciências humanas é diferente do método daquilo que ele chamou de res extensa que são as ciências naturais. Isso ninguém pode negar, contudo esses métodos têm a mesma base positivista. O leitor vai-se lembrar que August Comte queria fazer uma ciência natural da sociologia.

Sendo a sociologia uma ciência que provêm da experiência, o corolário da tese de que o fundamento do conhecimento proveniente da experiência é a lógica e o fundamento da lógica é a sociologia, ou seja, um conhecimento que provêm da experiência não apenas é tautológico mas também põe a nu que o conhecimento objectivo não tem fundamento nenhum porque se nada há para além do mundo sensível, então, aí entra o cepticismo para negar a possibilidade do conhecimento não apenas objectivo mas de todo e qualquer conhecimento. Então, é aí que entra Descartes e sua dúvida universal.

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O que Descartes faz nas suas “meditações de filosofia primeira” é buscar um fundamento sólido para o conhecimento. Algumas pessoas podem dizer que essa busca não é necessária porque o cepticismo é um absurdo, ou seja, contém contradição lógica interna. Isso é verdade. Contudo, você dizer que o enunciado do ceptismo é auto-contraditório também não é um fundamento do conhecimento. Você pode até conseguir calar a boca do céptico mas o problema continua aí intacto. Ele não pode ser resolvido nesses termos. O apelo a violação do princípio da não contradição, ou do princípio da identidade ou princípio da razão suficiente ou terceiro excluído só mostra o limite lógico do cepticismo e mais nada. No entanto, você também pode dizer que o cepticismo não faz sentido porque o aperfeiçoamento da técnica em várias áreas prova a viabilidade do conhecimento. Porém, isso também não é o fundamento da possibilidade do conhecimento. Isso mostra apenas um limite prático do cepticismo. Agora, um limite prático, ou seja, uma contradição insolúvel no campo da praticidade humana é uma aporia e um problema aporético no campo prático é uma gozação demoníaca.

Então, Descartes resolve duvidar de tudo e começar tudo de novo. Então, ele diz: “se eu duvido, eu não posso pelo menos duvidar que eu duvido e se eu faço isso é porque penso e se penso é porque existo”, em suma: cogito ergo sum, ou seja, penso, logo existo. Por outras palavras, para Descartes, o fundamento do conhecimento é o ego cogito. Agora, esse eu cogito não é o eu empírico dos existencialistas como Jean Paul Sartre mas sim, o eu universal, ou seja, o eu transcendental ou ainda aquilo que Edmund Husserl chama de “consciência transcendental”. Ele é transcendental pelo simples facto de que ele transcende o eu empírico, o mundo dos dados sensíveis, o conhecimento objectivo. Mas tudo isso começa com o cepticismo.

Husserl também chegou a consciência transcendental como fundamento do conhecimento tal como Descartes. Contudo, já dentro dessa consciência transcendental, esses dois filósofos adoptaram atitudes totalmente diferentes. Descartes, já dentro da consciência transcendental, diz: “bom, isso já não é um problema para mim”, agora, eu vou voltar a tratar do mundo objectivo como biologia, física, etc. Husserl diz: “não, eu não volto para o mundo dos dados sensíveis porque o que eu queria era isso. É aqui no miolo do conhecimento que eu vou permanecer”. O que Husserl faz é trazer tudo de volta a sua essência, aliás, isso é que é a sua “fenomenologia”. Ou seja, não apenas uma modalidade do aparecimento dos fenómenos mas a redução destes a sua essência de modo que a filosofia de Husserl não é dedutiva mas descritiva o que também significa que o método que ele usa não é o método dialéctico da filosofia dedutiva mas sim o método intuitivo porque Husserl não sai da consciência transcendental e aí tudo é simultâneo de modo que a fenomenologia pode ser considerada como sendo uma prática ascética, uma ascese intelectual.

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Descartes faz a dúvida metódica e chega ao ego cogito como fundamento do conhecimento. Agora, como é que da certeza que o ego tem da sua própria existência você vai deduzir a totalidade das ciências? Ou seja, como é que da certeza que o eu tem da sua própria existência você vai deduzir a lei da gravitação universal, a termodinâmica, a relatividade, etc.? Então, aí, Descartes apela para Deus. Quer dizer, em última instância, para Descartes, o fundamento do conhecimento é o próprio Deus. Isso é de deixar os cientistas ateus furiosos. Agora, Deus, quid est? Aristóteles diz que Deus é o fundamento mesmo da realidade. Então, se fosse retirado o fundamento, a realidade rui sem dúvida alguma.

Isso não significa que o eu transcendental ou a consciência transcendental é Deus. De modo nenhum. Deus está totalmente fora disso no sentido de que ele abarca e subordina a consciência transcendental. Isso é uma outra coisa. Agora, se você abole a consciência transcendental isso é como a ciência furar seus próprios olhos. Ela se torna cega. Não apenas a ciência mas também a lógica. Se se tornam cegas, em que elas se transformam? Em psicologismo.  É por isso que hoje, as ciências são apenas isso, ou seja, psicologismo. Então, você tem que psicanalisar tudo.


ESCRITO POR|XADREQUE SOUSA|shathreksousa@gmail.com

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