Por meio da dúvida
universal, Descartes chega ao ego cogito
como fundamento do conhecimento. Contudo, para Descartes o ego cogito que é o
que Husserl chamou de “consciência transcendental” não é suficiente por si para
fundar o conhecimento de modo que ele apela para Deus.
Diferentemente de
Descartes que depois da descoberta do eu transcendental retorna ao mundo dos
objectos sensíveis, Husserl não sai da consciência transcendental. Isso é que é
fenomenologia, o mundo da vida, o lebenswelt.
De modo que a fenomenologia não é dedutiva mas sendo a modalidade de
aparecimento dos entes ela é descritiva porque ela é intuitiva e chega a ser um
ascetismo intelectual.
Acabei de ler uma colectânea de prelecções
do filósofo Olavo de Carvalho de 1993 publicada por seus alunos sob o título
“Edmund Husserl contra o psicologismo” transcrito da fita magnética. O material
não foi corrigido e contém muitos erros de gramática, imprecisões, gaps, contudo, ainda assim, é um
material muito rico, muito bom mesmo. Eu só acho que em vez de terem dado o título
que deram àquela colectânea, se calhar fosse mais apropriado chamá-la de “
Husserl e o fundamento do conhecimento” ou “Husserl e a consciência
transcendental” porque eu acho que é sobre isso que, no fundo, aquele material
trata e que a crítica do psicologismo é apenas um pretexto, uma elaboração
psicológica de uma causa, digo, um motivo, para se chegar a consciência
transcendental.
***
Os homens de ciência imaginam que o
conhecimento científico, digo, um conhecimento obtido metodologicamente por
meio da observação e experimentação controladas em laboratório, é o único
conhecimento válido. Contudo, eles nunca param para fazer a seguinte pergunta:
“qual é o fundamento do conhecimento objectivo”? Essa pergunta é importante
porque se o conhecimento objectivo não tem nenhum fundamento, então, segue-se
que ele não é possível.
É por não encontrar nenhum fundamento para
o conhecimento que os cépticos dizem que nenhum conhecimento é possível. Os
cientistas também são cépticos. Porém, seu cepticismo não é universal mas apenas
particular ou seja, eles acreditam apenas na possibilidade do conhecimento
científico. Mas qual é o fundamento disso?
Veja, a possibilidade e a impossibilidade
são categorias pensamentais, do nosso pensamento, assim como a unidade, a
realidade, a quantidade, a qualidade, o nexo de causa-efeito, a negação, etc.
Agora, nós sabemos que quando falamos de pensamento, então, temos a lógica,
como a arte do pensamento correcto que vai nos dar a coerência do raciocínio e
validar a sua conclusão. Deste modo, somente é possível o ente que tem
coerência lógica interna e é impossível o ente que não tem coerência lógica
interna. Por outras palavras, se o conhecimento científico é possível é porque
ele tem coerência lógica interna. Então, estamos dizendo que o fundamento do
conhecimento científico e de todo e qualquer conhecimento é a lógica.
Dizer que o conhecimento objectivo se
funda na lógica é suficiente? De modo nenhum porque aí surge uma outra questão,
ei-la: “qual é o fundamento da lógica”? Um dos fundadores da sociologia, o
francês Emilie Durkheim, diz que a lógica é uma construção social. Contudo,
quando você examina a lógica e a aritmética elementar você chega a conclusão de
que elas são idênticas. Deste modo, você dizer que a lógica é uma construção
social é idêntico a você dizer que a aritmética elementar é uma construção
social, ou seja, 2+2=4 é uma construção social. Ora, é preciso ser muito pueril
para acreditar numa coisa dessas porque isso seria tomar um juízo sintético no
lugar de um juízo analítico e portanto à priori.
Num mundo dominado pelo
sócio-construtivismo, a tendência normal dos seres humanos é abusar da quota de
burrice permitida a um ser humano normal. Tanto isso é assim que no contexto do
mundo moderno em que a ciência ignora totalmente o seu fundamento ser burro é
uma necessidade metafísica da mais alta transcendência. Ou como alguém disse:
“o teorema de Pitágoras é um teorema machista porque Pitágoras antes de enunciá-la
não consultou as mulheres”. Também podemos dizer que a equação de Einstein
E=m.c2 é uma equação racista porque Einstein não consultou os
negros.
Ora, 2+2=4 independe da existência de
qualquer sociedade, aliás, independe até mesmo da existência de um 2 ou de um
4, é a isso que se chama mathese megiste.
A lógica mexe com o mundo das possibilidades e não com o mundo dos factos. Os
números são entes de razão, a lógica trata dos entes de razão e não dos entes
reais, de res, coisas ou objectos da
nossa experiência. Você pode dizer: “tudo bem. Mas isso é apenas lógica
formal”. Veja, o que é lógica material? Quando você faz uma indução isso é uma
lógica material? De modo nenhum. A indução nem se quer tem que ver com a
lógica. A lógica material é o que chamamos de metodologia. O que é metodologia?
É aquilo que Francis Bacon, no século XVI, chamou de “organun”. Aliás, Novo Organum é o título da maior obra de
Bacon. O que é um organum? É um
instrumento. Então, partindo daquilo que é formalmente lógico você vai
deduzindo para a técnica, ou seja, para aquilo que é normativo.
Então, vemos aqui que a proposição de que
a lógica provêm da sociologia encerra um juízo falso. Aliás, mesmo que a lógica
viesse da sociologia, fosse uma construção social, você não poderia estabelecer
um nexo causal mas apenas uma implicação lógica mas também, neste caso, isso
seria um bicho que se morde pela sua própria cauda. Ou seja, a sociologia é uma
ciência baseada em dados sensíveis como qualquer outra ciência. É claro que
você pode objectar dizendo que o método daquilo que Descartes chamou de res cogitan que são as ciências humanas
é diferente do método daquilo que ele chamou de res extensa que são as ciências naturais. Isso ninguém pode negar,
contudo esses métodos têm a mesma base positivista. O leitor vai-se lembrar que
August Comte queria fazer uma ciência natural da sociologia.
Sendo a sociologia uma ciência que provêm
da experiência, o corolário da tese de que o fundamento do conhecimento
proveniente da experiência é a lógica e o fundamento da lógica é a sociologia,
ou seja, um conhecimento que provêm da experiência não apenas é tautológico mas
também põe a nu que o conhecimento objectivo não tem fundamento nenhum porque
se nada há para além do mundo sensível, então, aí entra o cepticismo para negar
a possibilidade do conhecimento não apenas objectivo mas de todo e qualquer
conhecimento. Então, é aí que entra Descartes e sua dúvida universal.
***
O que Descartes faz nas suas “meditações
de filosofia primeira” é buscar um fundamento sólido para o conhecimento.
Algumas pessoas podem dizer que essa busca não é necessária porque o cepticismo
é um absurdo, ou seja, contém contradição lógica interna. Isso é verdade.
Contudo, você dizer que o enunciado do ceptismo é auto-contraditório também não
é um fundamento do conhecimento. Você pode até conseguir calar a boca do
céptico mas o problema continua aí intacto. Ele não pode ser resolvido nesses
termos. O apelo a violação do princípio da não contradição, ou do princípio da
identidade ou princípio da razão suficiente ou terceiro excluído só mostra o
limite lógico do cepticismo e mais nada. No entanto, você também pode dizer que
o cepticismo não faz sentido porque o aperfeiçoamento da técnica em várias áreas
prova a viabilidade do conhecimento. Porém, isso também não é o fundamento da
possibilidade do conhecimento. Isso mostra apenas um limite prático do
cepticismo. Agora, um limite prático, ou seja, uma contradição insolúvel no
campo da praticidade humana é uma aporia e um problema aporético no campo
prático é uma gozação demoníaca.
Então, Descartes resolve duvidar de tudo e
começar tudo de novo. Então, ele diz: “se eu duvido, eu não posso pelo menos
duvidar que eu duvido e se eu faço isso é porque penso e se penso é porque
existo”, em suma: cogito ergo sum, ou
seja, penso, logo existo. Por outras palavras, para Descartes, o fundamento do
conhecimento é o ego cogito. Agora,
esse eu cogito não é o eu empírico dos existencialistas como Jean Paul Sartre
mas sim, o eu universal, ou seja, o eu transcendental ou ainda aquilo que
Edmund Husserl chama de “consciência transcendental”. Ele é transcendental pelo
simples facto de que ele transcende o eu empírico, o mundo dos dados sensíveis,
o conhecimento objectivo. Mas tudo isso começa com o cepticismo.
Husserl também chegou a consciência
transcendental como fundamento do conhecimento tal como Descartes. Contudo, já
dentro dessa consciência transcendental, esses dois filósofos adoptaram
atitudes totalmente diferentes. Descartes, já dentro da consciência
transcendental, diz: “bom, isso já não é um problema para mim”, agora, eu vou
voltar a tratar do mundo objectivo como biologia, física, etc. Husserl diz:
“não, eu não volto para o mundo dos dados sensíveis porque o que eu queria era
isso. É aqui no miolo do conhecimento que eu vou permanecer”. O que Husserl faz
é trazer tudo de volta a sua essência, aliás, isso é que é a sua
“fenomenologia”. Ou seja, não apenas uma modalidade do aparecimento dos
fenómenos mas a redução destes a sua essência de modo que a filosofia de
Husserl não é dedutiva mas descritiva o que também significa que o método que
ele usa não é o método dialéctico da filosofia dedutiva mas sim o método
intuitivo porque Husserl não sai da consciência transcendental e aí tudo é
simultâneo de modo que a fenomenologia pode ser considerada como sendo uma
prática ascética, uma ascese intelectual.
***
Descartes faz a dúvida metódica e chega ao
ego cogito como fundamento do
conhecimento. Agora, como é que da certeza que o ego tem da sua própria existência você vai deduzir a totalidade das
ciências? Ou seja, como é que da certeza que o eu tem da sua própria existência
você vai deduzir a lei da gravitação universal, a termodinâmica, a
relatividade, etc.? Então, aí, Descartes apela para Deus. Quer dizer, em última
instância, para Descartes, o fundamento do conhecimento é o próprio Deus. Isso
é de deixar os cientistas ateus furiosos. Agora, Deus, quid est? Aristóteles diz que Deus é o fundamento mesmo da
realidade. Então, se fosse retirado o fundamento, a realidade rui sem dúvida
alguma.
Isso não significa que o eu transcendental
ou a consciência transcendental é Deus. De modo nenhum. Deus está totalmente
fora disso no sentido de que ele abarca e subordina a consciência
transcendental. Isso é uma outra coisa. Agora, se você abole a consciência
transcendental isso é como a ciência furar seus próprios olhos. Ela se torna
cega. Não apenas a ciência mas também a lógica. Se se tornam cegas, em que elas
se transformam? Em psicologismo. É por
isso que hoje, as ciências são apenas isso, ou seja, psicologismo. Então, você
tem que psicanalisar tudo.
ESCRITO POR|XADREQUE
SOUSA|shathreksousa@gmail.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário