quinta-feira, 23 de março de 2017

Tipos de conduta

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Miguel Reale fala de 4 tipos de conduta, a saber: religiosa, moral, costumeira e jurídica. A conduta religiosa só faz sentido em face do conceito de transcendência. A conduta moral é inata e se dá numa relação do ego com o alter. A conduta costumeira é fruto da cultura e se resume em regras de etiqueta e cortesia. A conduta jurídica não faz sentido sem o instituto da sanção.
Em caso de conflito entre esses tipos de conduta a tendência é cada um puxar a brasa para a sua sardinha. Contudo, abstraído de todas essas “ontologias regionais”, do ponto de vista da estrutura da realidade mesmo a conduta ligada ao transcendental, que é a religiosa, abarca e subordina as demais transcendendo-as infinitamente.

O jusfilósofo brasileiro Miguel Reale no seu “Filosofia do Direito” fala de 4 tipos de conduta, nomeadamente: (i)conduta religiosa; (ii) conduta moral; (iii) conduta costumeira e (iv) conduta jurídica.

Eu quero meditar um pouco acerca disso porque tenho travado bastantes diálogos acerca da moral principalmente no que toca a origem da moral. Quando leio os manifestos ateísticos de R.Dawkins (“Deus, um delírio”), C.Hitchens (“deus não é grande”), V.Stenger (“God, a failed hipothesis”), F.Nietzsche (“o anticristo”, “Zaratustra”) e alguns textos de B.Russel et caterva essa questão sobre a fonte-origem da moral sempre é suscitada.

Os autores que citei supra negam que a moral tenha algo que ver com a religião e eles chegam a afirmar que ninguém precisa da religião para ser moralmente correcto. Conversando com um amigo a respeito disso ele insistia no contrário dizendo que a moral vem da religião. Não querendo ser paladino de um nem o carrasco de outro deixe-me dizer primeiramente que a visão da religião como filosofia moral começa com Kant. Ninguém antes dele olhava para a religião nesses termos.

Muitas pessoas olham para a religião como um corpo de crenças, um conjunto de símbolos e ritos, um conjunto de códigos de ética, etc., mas essa imagem de religião só existe na cabeça de quem vê a religião desde um ângulo externo à própria religião como quem investiga um átomo o que é uma confusão mental muito grande sobre a lógica propriamente daquilo que R.Descartes chamava res cogitans em oposição a res extensa. By the way, símbolos, ritos, crenças, códigos de ética, etc., não estão presentes apenas na religião como sua face mais visível mais exotérica se quisermos, mas eles estão presentes também na política, na ciência, nas artes, nos desportos, etc.

Como eu já expliquei em outros artigos, as religiões, falando, a título de exemplo das grandes religiões monoteístas, a religião antes de ser como dizem os leigos um acreditar em algo sem ter motivo para acreditar ou seja a crença num dogma, elas são a vida dos seus fundadores e dos que aderiram a eles. Veja, o que é o judaísmo? É um corpo de crença? De modo nenhum. É a história do povo judeu ao longo dos últimos 5000 anos. O que é o cristianismo? Um corpo de crença? De modo nenhum? É a história da vida de Cristo e dos cristãos ao longo dos últimos 2017 anos. O que é o islamismo? É a vida de Maomé e dos mussulmanos ao longo dos últimos 1400 anos. Sem compreender isso você nunca vai saber o que é religião.

Conduta religiosa
Não se pode falar de religião nem de conduta religiosa sem se incorporar nesse proslogion o conceito de transcendência. De modo que os símbolos, mitos, crenças, códigos de ética, etc., se eles não estiverem impregnados da noção do transcendental não tem carácter religioso. Deste modo, quando um religioso adopta uma conduta que procura aproximá-lo axiologicamente do que é certo e afastá-lo daquilo que é errado, ele não faz isso senão para religar-se com a realidade que o abarca e o subordina, transcendendo-o infinitamente como diz São Paulo, apóstolo, “nele vivemos, nos movemos e somos”.

Conduta moral
Diferentemente da conduta religiosa que é orientada pelo axio, pelo valor, do transcendente, a conduta moral é orientada por um outro valor de natureza mais imanente, mais correspondente aos traços de personalidade mesmo da pessoa considerada monadicamente, individualmente, e que vai distingui-la de outras pessoas.

Contudo, malgrado esse aspecto imanente da conduta moral ele se dar sempre numa relação mas não propriamente numa relação cognoscitiva de sujeito-objecto, uma relação entre cognoscem e cognitum mas sim uma relação mais de natureza axiológica entre o ego e o alter, ou seja, entre o eu e um outro eu.

Assim como a metafísica abarca e subordina a física transcendendo-a infinitamente e dando-lhe sentido, por ser transcendental a conduta religiosa abarca e subordina a conduta moral contudo isso não significa propriamente que a conduta religiosa tenha com a conduta moral um nexo causal mas significa apenas que a conduta moral implica a conduta religiosa e que esta última lhe dá o seu verdadeiro fundamento.

Conduta costumeira
A conduta costumeira não é transcendental ou seja ela não tem um sentido em si mesma e ela também não emana do indivíduo isoladamente. Por outras palavras, a conduta costumeira emana da cultura, digo, dos hábitos e costumes enquanto sistema de valores em torno do qual se constrói o imaginário colectivo de um povo. Assim, temos a regras de etiqueta, as regras de cortesia. Ora, isso não é propriamente meu, não é propriamente seu, mas ele é nosso enquanto colectividade humana unida por certos nexos a que chamamos de cultura. Contudo, se não existisse em cada um de nós individualmente a imanência da moral, isso também não teria sentido algum de modo que alguns seres humanos dada a sua deficiência de carácter procuram substituir a conduta moral por uma caricatura grosseira da mesma sob forma de conduta costumeira, ou seja, colocar a etiqueta, colocar a cortesia, no lugar da moral.

Tudo isso é muito perigoso. Na verdade, a etiqueta, a cortesia, podem tornar o ser humano profundamente hipócrita porque por trás da máscara de boas maneiras pode-se esconder alguém profundamente imoral e podemos até dizer que a etiqueta e a cortesia são um desperdício de vida. Já dizia Rimbaud: “par delicatesse je perdu ma vie” porque por você querer ser cortês com todo mundo mesmo quando a sua moral é contra vai implicar em você passar a viver de simulação e quando isso acontece você perdeu consistência como ser humano.

Na senda de Ortega y Gasset eu imagino que a única regra de etiqueta e cortesia que deveríamos observar é apenas sermos o mais claros possíveis com as pessoas como diz aquele prosador basco: “la claridade es la cortesia del filósofo”. E ser claro implica ser sincero. Essa devia ser a única regra de cortesia porque ela é o início, o primeiro degrau, para a busca do conhecimento. Mário Ferreira dos Santos encarnou isso tão bem que uma certa vez ele estava saindo do elevador e a sua frente estava um indivíduo muito desonesto que queria cumprimentá-lo com um aperto de mão e aquele filósofo da “matesis” insuflado de sinceridade retrucou dizendo: “eu não aperto a mão de um cocó”. Eis aí a cortesia do filósofo.

        Conduta jurídica
O conceito do que seria uma conduta jurídica é, na verdade, bastante problemático porque se por um lado existe um esforço neo-positivista dos jusfilósofos da escola de Viena e da escola analítica de Cambridge para purificar o direito dos seus pseudoproblemas como o esforço empreendido por Hans Kelsen na sua “Teoria pura do direito” tratando o direito apenas formalmente como norma, existe por outro lado, um esforço para oferecer uma visão mais concreta do direito. Eu me refiro concreto aqui não no sentido da res extensa como erradamente tem sido usada essa palavra mas na sua acepção latina de concrescior, ou seja, aquilo que cresce junto. Não querendo menosprezar alguns jusfilósofos espanhóis que fizeram um trabalho monumental nessa área, mas quem conseguiu apresentar uma solução mais completa desse problema foi o jusfilósofo brasileiro Miguel Reale com a sua “teoria tridimensional do direito” em que ele nos apresenta o direito não tomado abstractivamente apenas como norma jurídica mas na sua concreção.

Para Miguel Reale o direito não é apenas normativo como defendia H.Kelsen. O direito também não deve ser tomado apenas como um axio, um valor apenas como faz por exemplo o Giovani Gentile e o direito não deve ser tomado apenas como um facto como fazem por exemplo os economistas muito mais pela influência de Marx pese embora não se possa negar que o conteúdo material do direito seja propriamente a economia. O que Reale faz é juntar todos esses aspectos do direito num único front arbitrando-os dialecticamente mas não numa dialéctica de contradição mas sim numa dialéctica de complementaridade e oferecer uma visão concreta do direito de modo que para ele o direito não é apenas uma norma formalmente considerada mas uma norma valorizada pelos factos.

Então, uma conduta jurídica se difere das outras condutas supra como a religiosa, a moral e a costumeira porque ela introduz um elemento novo que é a sanção. Não contente, a conduta jurídica não apenas dos advogados, dos juízes, dos réus mas da população em geral está muito dependente não apenas do conhecimento das normas jurídicas ou seja regras de direito mas também da interpretação que se faz dessas normas que muitas vezes é contrariada pelos factos fazendo com que os que estão debaixo delas tenham que fazer uma manobra muito grande para captar dela o que se pode captar da intenção do legislador.

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O jusfilósofo italiano Giorge Del Vecchio diz que a ética se divide em moral e direito. Deste modo, a moral e o direito são apenas aspectos subjectivos da ética. Já dissemos em outros artigos que a ética procura alcançar o núcleo axiológico do verdadeiro e do falso enquanto a moral e o direito lidam directamente com a praticidade humana, com a dramaticidade humana, procurando alcançar o núcleo axiológico antropológico do certo e do errado. Então, a moral e o direito enquanto tomados especulativamente como especulação do verdadeiro e do falso nos dão a ética e a ética tomada enquanto praticamente nos dá a moral e o direito, cabendo a moral, portanto, no âmbito do estudo daquilo que J.Bentham chamou “deontologia” que é a teoria geral do dever e o direito cabendo no âmbito da jurisprudência.

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Rudolf Stammler fala em “direito justo” o que já dá como pressuposto que nem todo direito é justo. Ou seja, um direito não no sentido de algo a que temos direito mas direito como norma pode entrar em conflito com a conduta religiosa, moral e costumeira. Neste caso, o que é que prevalece? É claro que os juristas dirão que a conduta jurídica prevalece sobre as condutas religiosa, moral e costumeira. Porém, se perguntarmos a um religioso ele vai dizer que a conduta religiosa é que prevalece e assim por diante tanto é que no tempo da “república popular” os Testemunhas de Jeová foram levados para os campos de concentração por se recusarem a cumprir o serviço militar.

Se não existisse um dever ser não haveria direito. E só pode existir um dever ser existindo um ser cuja potência axiológica não esteja totalmente actualizada. Então, primeiro, você tem o ser que está meio em acto e meio em potência e só depois é que você tem o dever ser de modo que como diz Louis Lavelle a base de tudo é o ser, ou seja, você tem o ser e depois você tem o eu e por último você tem a realidade que pode ser jurídica, sociológica e outra. Então, quando falamos do ser entramos na ontologia que é a metafísica geral de modo que desde o ponto de vista da estrutura da realidade o ser tem prioridade sobre o dever ser e isso equivale a dizer que o transcendental tem prioridade ontológica sobre o imanente do ponto de vista da estrutura da realidade de modo que sacrificar o ser ao dever ser é solapar o fundamento mesmo da realidade.

Deste modo, do ponto de vista da estrutura da realidade, no caso de conflito entre esses 4 tipos de conduta aquela conduta que está ligada ao que é transcendental, a qual é a conduta religiosa, abarca e subordina as demais e não adianta vociferar porque há um debate muito grande sobre o que está por trás da motivação das acções humanas certas e erradas. Então, chegamos a duas visões diferentes de dois grandes psicólogos, sendo uma do Sigmund Freud e a outra do Lipot Szondi. Freud explica tudo com base na libido e então ele fala do “complexo de Édipo” que ele foi buscar em “o rei Édipo” de Sófocles. Enquanto isso, Lipot Szondi explica tudo com base na religião e ele fala do “complexo de Caim”.

Me parece que o tal do complexo de Édipo é uma proposta bastante rebuscada. Bin Laden explode o WTC em 11/9. Como é que você vai explicar isso através das fantasias sexuais reprimidas? Stalin e Mao Dez Dong juntos matam mais de 100 milhões de civis inermes. Como é que você vai explicar isso em termos psicanalíticos do complexo de Édipo? Me parece impossível. Mas você pode explicar tudo isso e muito mais por meio do complexo de Caim porque em todas as acções humanas certas e erradas está implicado o desejo de transcendência como muito amplamente demonstrado por Eric Voeglin, James Bilington, Hans Hurs Von Baltazar, Cohen e Hannah Arendt na política mormente nos movimentos totalitários do século XX porque como diz Leonardo Padura no seu “Le Hombre que amaba a los peros”, o comunismo, a maior utopia que o homem já inventou em face do seu cortejo de miséria, mortes, corrupção, etc., não pareciam obras de homens, os quais homens disse ele nutriam em seus espíritos o desejo de poder e ânsia de transcendência quando a única coisa que importa na vida é a simples caridade que Jacques Maritain diz ser mesmo o “sentido da vida” nos moldes de V.Frankl. Quer dizer, é a velha lição de Cristo de novo, de novo e de novo.

ESCRITOPOR|XADREQUE SOUSA|shathreksousa@gmail.com

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