Miguel Reale fala
de 4 tipos de conduta, a saber: religiosa, moral, costumeira e jurídica. A
conduta religiosa só faz sentido em face do conceito de transcendência. A conduta
moral é inata e se dá numa relação do ego
com o alter. A conduta costumeira é fruto
da cultura e se resume em regras de etiqueta e cortesia. A conduta jurídica não
faz sentido sem o instituto da sanção.
Em caso de
conflito entre esses tipos de conduta a tendência é cada um puxar a brasa para
a sua sardinha. Contudo, abstraído de todas essas “ontologias regionais”, do
ponto de vista da estrutura da realidade mesmo a conduta ligada ao transcendental,
que é a religiosa, abarca e subordina as demais transcendendo-as infinitamente.
O jusfilósofo brasileiro Miguel Reale no
seu “Filosofia do Direito” fala de 4 tipos de conduta, nomeadamente: (i)conduta
religiosa; (ii) conduta moral; (iii) conduta costumeira e (iv) conduta
jurídica.
Eu quero meditar um pouco acerca disso
porque tenho travado bastantes diálogos acerca da moral principalmente no que
toca a origem da moral. Quando leio os manifestos ateísticos de R.Dawkins
(“Deus, um delírio”), C.Hitchens (“deus não é grande”), V.Stenger (“God, a
failed hipothesis”), F.Nietzsche (“o anticristo”, “Zaratustra”) e alguns textos
de B.Russel et caterva essa questão
sobre a fonte-origem da moral sempre é suscitada.
Os autores que citei supra negam que a moral tenha algo que ver com a religião e eles
chegam a afirmar que ninguém precisa da religião para ser moralmente correcto.
Conversando com um amigo a respeito disso ele insistia no contrário dizendo que
a moral vem da religião. Não querendo ser paladino de um nem o carrasco de
outro deixe-me dizer primeiramente que a visão da religião como filosofia moral
começa com Kant. Ninguém antes dele olhava para a religião nesses termos.
Muitas pessoas olham para a religião como
um corpo de crenças, um conjunto de símbolos e ritos, um conjunto de códigos de
ética, etc., mas essa imagem de religião só existe na cabeça de quem vê a
religião desde um ângulo externo à própria religião como quem investiga um
átomo o que é uma confusão mental muito grande sobre a lógica propriamente
daquilo que R.Descartes chamava res
cogitans em oposição a res extensa. By
the way, símbolos, ritos, crenças, códigos de ética, etc., não estão
presentes apenas na religião como sua face mais visível mais exotérica se
quisermos, mas eles estão presentes também na política, na ciência, nas artes,
nos desportos, etc.
Como eu já expliquei em outros artigos, as
religiões, falando, a título de exemplo das grandes religiões monoteístas, a
religião antes de ser como dizem os leigos um acreditar em algo sem ter motivo
para acreditar ou seja a crença num dogma, elas são a vida dos seus fundadores
e dos que aderiram a eles. Veja, o que é o judaísmo? É um corpo de crença? De
modo nenhum. É a história do povo judeu ao longo dos últimos 5000 anos. O que é
o cristianismo? Um corpo de crença? De modo nenhum? É a história da vida de
Cristo e dos cristãos ao longo dos últimos 2017 anos. O que é o islamismo? É a
vida de Maomé e dos mussulmanos ao longo dos últimos 1400 anos. Sem compreender
isso você nunca vai saber o que é religião.
Conduta
religiosa
Não se pode falar de religião nem de
conduta religiosa sem se incorporar nesse proslogion
o conceito de transcendência. De modo que os símbolos, mitos, crenças,
códigos de ética, etc., se eles não estiverem impregnados da noção do
transcendental não tem carácter religioso. Deste modo, quando um religioso
adopta uma conduta que procura aproximá-lo axiologicamente do que é certo e
afastá-lo daquilo que é errado, ele não faz isso senão para religar-se com a
realidade que o abarca e o subordina, transcendendo-o infinitamente como diz
São Paulo, apóstolo, “nele vivemos, nos movemos e somos”.
Conduta
moral
Diferentemente da conduta religiosa que é
orientada pelo axio, pelo valor, do
transcendente, a conduta moral é orientada por um outro valor de natureza mais
imanente, mais correspondente aos traços de personalidade mesmo da pessoa
considerada monadicamente, individualmente, e que vai distingui-la de outras
pessoas.
Contudo, malgrado esse aspecto imanente da
conduta moral ele se dar sempre numa relação mas não propriamente numa relação cognoscitiva
de sujeito-objecto, uma relação entre cognoscem
e cognitum mas sim uma relação mais
de natureza axiológica entre o ego e
o alter, ou seja, entre o eu e um
outro eu.
Assim como a metafísica abarca e subordina
a física transcendendo-a infinitamente e dando-lhe sentido, por ser transcendental
a conduta religiosa abarca e subordina a conduta moral contudo isso não
significa propriamente que a conduta religiosa tenha com a conduta moral um
nexo causal mas significa apenas que a conduta moral implica a conduta
religiosa e que esta última lhe dá o seu verdadeiro fundamento.
Conduta
costumeira
A conduta costumeira não é transcendental
ou seja ela não tem um sentido em si mesma e ela também não emana do indivíduo
isoladamente. Por outras palavras, a conduta costumeira emana da cultura, digo,
dos hábitos e costumes enquanto sistema de valores em torno do qual se constrói
o imaginário colectivo de um povo. Assim, temos a regras de etiqueta, as regras
de cortesia. Ora, isso não é propriamente meu, não é propriamente seu, mas ele
é nosso enquanto colectividade humana unida por certos nexos a que chamamos de
cultura. Contudo, se não existisse em cada um de nós individualmente a
imanência da moral, isso também não teria sentido algum de modo que alguns
seres humanos dada a sua deficiência de carácter procuram substituir a conduta
moral por uma caricatura grosseira da mesma sob forma de conduta costumeira, ou
seja, colocar a etiqueta, colocar a cortesia, no lugar da moral.
Tudo isso é muito perigoso. Na verdade, a
etiqueta, a cortesia, podem tornar o ser humano profundamente hipócrita porque
por trás da máscara de boas maneiras pode-se esconder alguém profundamente
imoral e podemos até dizer que a etiqueta e a cortesia são um desperdício de
vida. Já dizia Rimbaud: “par delicatesse je perdu ma vie” porque por você
querer ser cortês com todo mundo mesmo quando a sua moral é contra vai implicar
em você passar a viver de simulação e quando isso acontece você perdeu consistência
como ser humano.
Na senda de Ortega y Gasset eu imagino que
a única regra de etiqueta e cortesia que deveríamos observar é apenas sermos o
mais claros possíveis com as pessoas como diz aquele prosador basco: “la
claridade es la cortesia del filósofo”. E ser claro implica ser sincero. Essa
devia ser a única regra de cortesia porque ela é o início, o primeiro degrau,
para a busca do conhecimento. Mário Ferreira dos Santos encarnou isso tão bem
que uma certa vez ele estava saindo do elevador e a sua frente estava um indivíduo
muito desonesto que queria cumprimentá-lo com um aperto de mão e aquele filósofo
da “matesis” insuflado de sinceridade retrucou dizendo: “eu não aperto a mão de
um cocó”. Eis aí a cortesia do filósofo.
Conduta
jurídica
O conceito do que seria uma conduta
jurídica é, na verdade, bastante problemático porque se por um lado existe um esforço
neo-positivista dos jusfilósofos da escola de Viena e da escola analítica de Cambridge
para purificar o direito dos seus pseudoproblemas como o esforço empreendido
por Hans Kelsen na sua “Teoria pura do direito” tratando o direito apenas
formalmente como norma, existe por outro lado, um esforço para oferecer uma
visão mais concreta do direito. Eu me refiro concreto aqui não no sentido da res extensa como erradamente tem sido
usada essa palavra mas na sua acepção latina de concrescior, ou seja, aquilo que cresce junto. Não querendo
menosprezar alguns jusfilósofos espanhóis que fizeram um trabalho monumental
nessa área, mas quem conseguiu apresentar uma solução mais completa desse
problema foi o jusfilósofo brasileiro Miguel Reale com a sua “teoria
tridimensional do direito” em que ele nos apresenta o direito não tomado
abstractivamente apenas como norma jurídica mas na sua concreção.
Para Miguel Reale o direito não é apenas
normativo como defendia H.Kelsen. O direito também não deve ser tomado apenas
como um axio, um valor apenas como
faz por exemplo o Giovani Gentile e o direito não deve ser tomado apenas como
um facto como fazem por exemplo os economistas muito mais pela influência de
Marx pese embora não se possa negar que o conteúdo material do direito seja
propriamente a economia. O que Reale faz é juntar todos esses aspectos do
direito num único front arbitrando-os
dialecticamente mas não numa dialéctica de contradição mas sim numa dialéctica
de complementaridade e oferecer uma visão concreta do direito de modo que para
ele o direito não é apenas uma norma formalmente considerada mas uma norma
valorizada pelos factos.
Então, uma conduta jurídica se difere das
outras condutas supra como a
religiosa, a moral e a costumeira porque ela introduz um elemento novo que é a
sanção. Não contente, a conduta jurídica não apenas dos advogados, dos juízes,
dos réus mas da população em geral está muito dependente não apenas do
conhecimento das normas jurídicas ou seja regras de direito mas também da
interpretação que se faz dessas normas que muitas vezes é contrariada pelos
factos fazendo com que os que estão debaixo delas tenham que fazer uma manobra
muito grande para captar dela o que se pode captar da intenção do legislador.
***
O jusfilósofo italiano Giorge Del Vecchio
diz que a ética se divide em moral e direito. Deste modo, a moral e o direito são
apenas aspectos subjectivos da ética. Já dissemos em outros artigos que a ética
procura alcançar o núcleo axiológico do verdadeiro e do falso enquanto a moral
e o direito lidam directamente com a praticidade humana, com a dramaticidade
humana, procurando alcançar o núcleo axiológico antropológico do certo e do
errado. Então, a moral e o direito enquanto tomados especulativamente como especulação
do verdadeiro e do falso nos dão a ética e a ética tomada enquanto praticamente
nos dá a moral e o direito, cabendo a moral, portanto, no âmbito do estudo
daquilo que J.Bentham chamou “deontologia” que é a teoria geral do dever e o
direito cabendo no âmbito da jurisprudência.
***
Rudolf Stammler fala em “direito justo” o
que já dá como pressuposto que nem todo direito é justo. Ou seja, um direito não
no sentido de algo a que temos direito mas direito como norma pode entrar em
conflito com a conduta religiosa, moral e costumeira. Neste caso, o que é que
prevalece? É claro que os juristas dirão que a conduta jurídica prevalece sobre
as condutas religiosa, moral e costumeira. Porém, se perguntarmos a um
religioso ele vai dizer que a conduta religiosa é que prevalece e assim por
diante tanto é que no tempo da “república popular” os Testemunhas de Jeová
foram levados para os campos de concentração por se recusarem a cumprir o serviço
militar.
Se não existisse um dever ser não haveria direito. E só pode existir um dever ser existindo um ser cuja potência
axiológica não esteja totalmente actualizada. Então, primeiro, você tem o ser
que está meio em acto e meio em potência e só depois é que você tem o dever ser de modo que como diz Louis
Lavelle a base de tudo é o ser, ou seja, você tem o ser e depois você tem o eu
e por último você tem a realidade que pode ser jurídica, sociológica e outra. Então,
quando falamos do ser entramos na ontologia que é a metafísica geral de modo
que desde o ponto de vista da estrutura da realidade o ser tem prioridade sobre
o dever ser e isso equivale a dizer
que o transcendental tem prioridade ontológica sobre o imanente do ponto de
vista da estrutura da realidade de modo que sacrificar o ser ao dever ser é
solapar o fundamento mesmo da realidade.
Deste modo, do ponto de vista da estrutura
da realidade, no caso de conflito entre esses 4 tipos de conduta aquela conduta
que está ligada ao que é transcendental, a qual é a conduta religiosa, abarca e
subordina as demais e não adianta vociferar porque há um debate muito grande
sobre o que está por trás da motivação das acções humanas certas e erradas. Então,
chegamos a duas visões diferentes de dois grandes psicólogos, sendo uma do
Sigmund Freud e a outra do Lipot Szondi. Freud explica tudo com base na libido e então ele fala do “complexo de Édipo”
que ele foi buscar em “o rei Édipo” de Sófocles. Enquanto isso, Lipot Szondi
explica tudo com base na religião e ele fala do “complexo de Caim”.
Me parece que o tal do complexo de Édipo é
uma proposta bastante rebuscada. Bin Laden explode o WTC em 11/9. Como é que você
vai explicar isso através das fantasias sexuais reprimidas? Stalin e Mao Dez Dong
juntos matam mais de 100 milhões de civis inermes. Como é que você vai explicar
isso em termos psicanalíticos do complexo de Édipo? Me parece impossível. Mas você
pode explicar tudo isso e muito mais por meio do complexo de Caim porque em
todas as acções humanas certas e erradas está implicado o desejo de transcendência
como muito amplamente demonstrado por Eric Voeglin, James Bilington, Hans Hurs
Von Baltazar, Cohen e Hannah Arendt na política mormente nos movimentos totalitários
do século XX porque como diz Leonardo Padura no seu “Le Hombre que amaba a los
peros”, o comunismo, a maior utopia que o homem já inventou em face do seu
cortejo de miséria, mortes, corrupção, etc., não pareciam obras de homens, os
quais homens disse ele nutriam em seus espíritos o desejo de poder e ânsia de transcendência
quando a única coisa que importa na vida é a simples caridade que Jacques
Maritain diz ser mesmo o “sentido da vida” nos moldes de V.Frankl. Quer dizer,
é a velha lição de Cristo de novo, de novo e de novo.
ESCRITOPOR|XADREQUE SOUSA|shathreksousa@gmail.com
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