sábado, 4 de fevereiro de 2017

Confusão entre nacionalidade e cidadania

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você não se torna parte de uma unidade étnica pelo simples facto de ter nascido no território pertencente a aquela unidade étnica ou pelo facto de você ter despendido uma soma enorme de dinheiro para adquiri essa tal da nacionalidade. De modo nenhum. Isso é de uma burrice atroz. O que se adquire por todos esses meios é cidadania e não nacionalidade.

Jacob Wassermann, que o filósofo Olavo de Carvalho disse ser um dos maiores romancistas de todos os tempos, uma espécie de Dostoiévisky do século XX, escreveu um livro com o título seguinte: “meu caminho como judeu e alemão”. Logo, a primeira vista, o que fica patente é que não há nenhuma incompatibilidade entre ser judeu e ser alemão porque ser judeu e ser alemão não são espécies do mesmo género, portanto, um não atrapalha o outro e vice-versa.

Ser judeu é o individuo pertencer a uma comunidade religiosa, só que, no judaísmo, o judeu já nasce judeu. Ele pode mais tarde renegar o judaísmo como Moisés Hess que renegou e entrou para o satanismo e depois, no final da vida, voltou outra vez para o judaísmo; temos também o caso de Karl Marx que era judeu e renegou e assim por diante, ou ainda ser expulso da comunidade judaica como o foi Baruch Spinoza. O facto de o judeu nascer judeu mostra que o judaísmo é uma unidade religiosa baseada nos laços de sangue. Por mais que um não judeu, digamos, se converta ao judaísmo, aceitando a circuncisão que, hoje em dia, nem chega a ser circuncisão porque os judeus já não removem o prepúcio, isso não faz dele um judeu, ele continua a ser um gentio, malgrado ter permissão para participar de algumas cerimónias religiosas como a páscoa mas, de acordo com a Torah ele não poderia entrar no templo de Salomão.

Oficialmente, a ONU diz que a nação de Israel surgiu em 1948, porém, se você definir como Hannah Arendt, nação como uma unidade étnica e linguística, essa afirmação se torna incoerente. Para que ela tenha validade material, você teria que acrescentar a unidade territorial, porém, quando você faz isso, você já evoluiu do conceito de estado para o conceito de estado-nação. Arendt, por exemplo, diz que os EUA não são um estado-nação. Eles têm um território mas eles não têm uma unidade linguística e étnica. Muitos pensam que todo mundo nos EUA fala inglês, isso é falso. O inglês é a língua oficial mas nem por isso há uma unidade linguística nos EUA e é impossível que haja porque, como se diz, “os EUA são um país de imigrantes”. Portanto, aí você tem pessoas das mais diversas etnias e provenientes das mais diversas unidades linguísticas, o que torna qualquer projecto de unidade linguística e étnica uma impossibilidade pura e simples.

Quando digo que os EUA são um país de imigrantes, as pessoas, logo, pensam na estátua da liberdade e invocando o poema da Emma Lázaro que está escrito no pedestal daquela estátua, convidando os cansados, os oprimidos a virem a ela em busca de alívio, dizem que esses cansados e oprimidos são os imigrantes, o que é um sentido dado pela esquerda norte-americana e não tem nada a ver com o sentido do poema e infelizmente, o analfabetismo funcional de muitas pessoas retira delas a capacidade de interpretar um texto como já escrevi num outro artigo, by the way, a estátua da liberdade foi oferecida aos EUA pelos franceses, portanto, estamos a falar do século XVIII enquanto o pedestal com o poema da Emma Lázaro só foi construído em 1903, portanto, dois séculos mais tarde.

Agora, ser alemão significa pertencer a uma unidade territorial específica por direito de nascimento ou por aquisição legal de cidadania. Se o filho de um casal alemão nasce nos EUA, ele é norte-americano; se o filho de um casal norte-americano nasce no Brasil, ele é brasileiro; porém, se um moçambicano vai viver para Portugal, depois de uns certos anos, ele pode requerer a cidadania portuguesa. Isso tudo mostra que o “ser alemão” é um conceito bastante elástico porque um individuo pode ser alemão por ter nascido em território alemão e de pais alemães; mas também um individuo pode ser alemão por ter nascido em território alemão mas de pais não alemães; um individuo ainda pode nem ter nascido em território alemão e nem ter pais alemães e ainda assim ser alemão por aquisição.

Tudo isso mostra que o conceito de nação está muito diluído em muitos países do mundo onde por exemplo, o conceito alemão, português, italiano, moçambicano, etc., já não evoca apenas a ideia de unidade étnica e linguística mas uma ideia que vai muito além dessa. E isso era totalmente desconhecido dos egípcios, mesopotâmios, babilónios, medo-persas e gregos. Essa coisa que chamamos de nacionalidade por aquisição em oposição a nacionalidade por originariedade começa com os romanos. Eles não somente inventaram isso mas também inventaram a adopção de filhos.

Há um episódio na bíblia, no livro dos actos dos apóstolos, em que São Paulo, o apóstolo, é preso e o tribuno ordenou que ele fosse açoitado e aí São Paulo disse que ele era romano e aí mandaram chamar o tribuno, o qual disse que ele também era romano e que este título de cidadão lhe custou uma grande soma de dinheiro, ao que São Paulo retorquiu, dizendo que ele era romano por direito de nascimento. Esse episódio de São Paulo mostra que esse negócio começou com os romanos, digo, a venda e compra de cidadania. Mais ainda, isso mostra que, na verdade, o que está em jogo aqui é a cidadania e não a nacionalidade. Quando um filho de pais canadianos nasce em londres, ele não adquire nacionalidade inglesa, ou seja, ele não se torna num bretão, ele apenas adquire a cidadania inglesa e se torna num cidadão inglês. O mesmo se dá quando um português vem viver para Moçambique e depois de um tempo adquire nacionalidade moçambicana. Na verdade, ele não adquiriu nacionalidade moçambicana mas, apenas, cidadania moçambicana.

Dizer que um italiano adquiriu nacionalidade russa ou que o filho de um casal russo adquiriu nacionalidade árabe faz-me rir porque nação é unidade étnica e linguística e você não se torna parte de uma unidade étnica pelo simples facto de você ter nascido no território pertencente àquela unidade étnica ou pelo facto de você ter despendido uma soma enorme de dinheiro para adquirir essa tal da nacionalidade. De modo nenhum. Isso é de uma burrice atroz. O facto de todos juristas do mundo repetirem essa cega-rega não significa que eles estão certos até porque não é possível democratizar o conhecimento, fazê-lo matéria de eleição. O caso de Sócrates prova que um individuo pode estar certo e toda a sua comunidade, errada.

Você até pode aprender a língua de uma nação mas para você fazer parte daquela unidade étnica, só se você descender daquela linhagem ética, essa é a coisa mais óbvia do mundo. E a coisa fica pior ainda quando você diz que adquiriu nacionalidade norte-americana pelo simples facto de que a nacionalidade norte-americana não existe porque os EUA não são um estado-nação.

O que se adquire por todos esses meios a que estamos fazendo referência é cidadania e não nacionalidade. Agora, a aquisição de cidadania só foi possível com os romanos porque só foi com os romanos que o direito atingiu o seu estágio mais elevado. Aliás, o direito que temos hoje, é o direito romano, o qual é um dos pilares da civilização ocidental. Os babilónios, os persas, os gregos, etc., não tiveram isso. Sua contribuição foi outra. Por exemplo, não se pode falar dos gregos sem se falar da filosofia grega, a qual é também um dos pilares da civilização ocidental e o outro é a moral tradicional judaico-cristã.

Agora, diferentemente de adquirir nacionalidade, a aquisição da cidadania faz de você um cidadão. Veja, Roma era uma cidade que reinava sobre as demais cidades do mundo conhecido. Ser um cidadão significava que você tinha um conjunto de direitos e um conjunto de deveres. Portanto, se tratava de um instituto legal.

Se você, por exemplo, nasceu na Rússia, de pais russos, ou seja, não de pais que também nasceram na Rússia mas, sim, de pais que pertencem a etnia daquele povo que ocupa aquele território chamado Rússia, os quais são os eslavos, você é russo, você tem nacionalidade russa, porém, ainda, assim, você pode não ser um cidadão russo, por exemplo, se você não respeita as leis russas ou se o estado russo lhe retira todos os direitos mas o estado russo nunca lhe poderá tirar a nacionalidade russa se você for filho de pais russos, ou seja, da etnia eslava, por mais que o estado queira ou pense que está a fazer isso. Porquê? Isso está no seu sangue e não há nenhuma constituição, nenhum executive order, etc., que pode mudar isso.

Agora, Wassermann, quando ele diz: “minha condição como judeu e alemão”, como eu já disse, nada disso é conflitante. Ele era um cidadão alemão por direito de nascimento, ou seja, por ele ter nascido em território alemão ele estava sujeito a direitos e deveres consagrados nas leis alemães, malgrado os judeus terem, depois, perdido todos os direitos de cidadão quando o führer toma o poder em 1933; porém, ele, o Wassermamn, como os demais judeus alemães, não tinha nacionalidade alemão no sentido rigoroso do termo porque, malgrado eles fazerem parte daquela unidade linguística, eles não faziam parte daquela unidade étnica germânica.

ESCRITO POR|XADREQUE SOUSA|shathreksousa@gmail.com

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