Deste modo, só
existe poesia, romance, arte, daquilo que nós não conseguimos explicar. E como
não conseguimos explicar, então, sintetizamos a coisa em símbolos artísticos
quer sob a forma de poesia, quer sob a forma romanceada ou sob a forma de
pintura, escultura e assim por diante.
Quando um poeta
lavra um poema em termos analíticos ou quando um romancista lavra um romance em
termos analíticos isso já não é mais poesia, isso já não é mais romance. Isso é
ensaio. O trabalho propriamente poético, romanesco, artístico consiste em
registar os eventos que nós não conseguimos compreender cognitivamente. Daí
serem “expressão de impressões”.
O livro do filósofo brasileiro Olavo de
Carvalho “Aristóteles em Nova Perspectiva: Introdução a teoria dos quatro
discursos” em cuja pista Olavo foi posto pelas leituras de um outro filósofo,
medieval, o filósofo islâmico mais conhecido por Avicena, revela que o discurso
mitopoético está no centro mesmo da filosofia de Aristóteles de modo que antes
que o individuo comece a filosofar ele tem que seguir o trajecto inteiro da
filosofia grega que começa mesmo com a poesia de onde se destaca a “ilíadas” de
Homero, seguindo-se a retórica dos sofistas e só depois disso é que vem a dialéctica
socrática e platónica e, por fim, a analítica de Aristóteles.
Por outras palavras, se alguém quiser ser
um filósofo de verdade deve começar por educar a sua imaginação, povoar a sua
imaginação? Como? Lendo as grandes obras de poesia e de ficção. A leitura da Bíblia
pode ser um bom começo, a leitura do Vedas, Alcorão, a ilíadas de Homero, a
divina comédia de Dante Alighieri, as peças de Shakespeare (Otelo, Hamlet, o
mercador de veneza, Macbeth, Romeu e Julieta, Júlio César, etc.), “Os Lusíadas”
de Camões, os poemas de T.S.Elliot, Rimbaud, Charles Baudalaire (as flores do
mal), Ibn-Arabi, Fernando Pessoa, Goethe (dr. Fausto), os romances de Dostoievisky
(crime e castigo, os demónios, o jogador, etc.), os romances de Gustav Flaubert
(Madame Bouvarie), Stendhal (o vermelho e o negro), Jacob Wassermann (O
Processo Maurizius , Etzel Andesgast e A Terceira Existência de Joseph
Kerkhoven), Robert Musil (Homem sem qualidade), Honoré de Balzac A comédia
humana), etc.
Muitas pessoas querem fazer poesia e
literatura de ficção e nem ao menos sabem o que é isso, digo, o trabalho que é
preciso desenvolver para se ser um poeta ou um escritor. Dizem que Moçambique é
terra de poetas porque poesia é o género literário mais cultivado por estas
bandas. Contudo, quando se lê esses tais poemas constata-se, com tristeza, que
a maior parte deles não seria aceite nem mesmo como TPC no ensino básico. De
facto não tem havido nenhum esforço de absorção da tradição literária pela
maior parte das pessoas que querem fazer literatura. Os vários programas que têm
sido levados a cabo em prol da literatura consistem, dizem, em caçar talentos
literários. Porém, há uma diferença muito grande entre alguém ter talento
literário e ser efectivamente um escritor. O talentoso, por definição, é um
imitador. Alguém que sabe imitar bem. Mas um escritor de verdade é aquele que
não somente conhece toda a tradição literária mas também e principalmente
contribui para ampliar e aprofundar essa mesma tradição como fez Dostoievisky
ao introduzir na técnica do romance as discussões filosóficas.
T.S.Elliot escreveu um artigo sobre a
tradição em literatura. Ou seja, quem é poeta? É quem tem a tradição poética.
Quem é escritor? É quem domina a tradição em literatura. Ora, para alguém
dominar a tradição em literatura é preciso ler bastante, vamos dizer, sei lá,
obras de mil poetas, contistas e romancistas de modo a absorver o estilo
literário de cada um e a partir desse material desenvolver seu próprio estilo.
Existem muitas obras de poesia e de ficção no mundo mas nem todas merecem o
esforço da leitura de modo que se alguém quer ser um escritor de verdade deve
ler as obras de escritores de verdade, ou seja, deve ler os clássicos da
literatura universal. Se calhar as pessoas possam perguntar: “como é que eu vou
saber se um livro é um clássico ou não”? Uma boa dica para resolver isso é ir
consultar quem entende do assunto e não existiu no mundo quem mais entendeu de
literatura universal do que o austríaco Otto Maria Carpeaux. Então, leia os
seus livros “as cinzas do purgatório” e principalmente “a história da
literatura ocidental” em quatro volumes se a memoria não me falha e você
deixará de ficar impressionado com Dan Brown e outros escritores comerciais.
Quando é que usamos o discurso mitopoético?
Veja, Benedetto Croce disse que poesia é “expressão de impressões”(sic).
Acontece que não é somente a poesia que é expressão de impressões. O romance,
os textos sagrados das religiões, as artes plásticas, as belas artes, etc., são
expressão de impressões. O que isso quer dizer? Isso significa que a poesia, o
romance, os contos, as artes no geral não têm uma explicação unívoca que a
abarca e a subordina em toda as suas singularidades, acidentes, extensões, etc.
de modo que a linguagem mitopoética, romanesca, artística, etc., é sempre
simbólica e, como diz Susan K. Langer, um símbolo é uma “matriz de
intelecções”(sic) possíveis. Mais ainda, os símbolos não são para serem
explicados mas eles são a própria explicação. Já dizia Seyed Hosn Nasr, um dos
luminares da filosofia tradicionalista, que tradição é a interpretação do mundo
por meio de mito e símbolos e isso só ratifica o que eu disse, digo, que os
símbolos não são para serem interpretados porque eles são a interpretação.
Deste modo, só existe poesia, romance,
arte, daquilo que nós não conseguimos explicar. E como não conseguimos
explicar, então, sintetizamos a coisa em símbolos artísticos quer sob a forma
de poesia ou sob a forma romanceada ou sob a forma de pintura, escultura e
assim por diante. Quando um poeta lavra um poema em termos analíticos ou quando
um romancista lavra um romance em termos analíticos isso já não é mais poesia,
isso já não é mais romance. Isso é ensaio. O trabalho propriamente poético,
romanesco, artístico consiste em registar os eventos que nós não conseguimos
compreender cognitivamente, daí serem expressão de impressões. É por isso que
eu disse que Paulina não é uma grande romancista porque seus romances não
suscitam questões. Quando você lê o livro de contos de Lília Momplé, por
exemplo, eu li o livro “Quem matou Suhura”, não sei se ela tem mais algum livro
publicado, mas é a mesma coisa. E isso também aparece nos poemas de
Craveirinha, Noémia de Sousa e assim por diante. Quer dizer, se você dominar
dois ou três estereótipos do repertório da ideologia esquerdista você entende os
romances de Paulina só pela leitura de duas, três páginas, e resume os poemas
dos ditos poetas da poesia de combate em cinco linhas.
***
Agora, eu fiquei muito feliz em ler um
poema de Mia Couto que consta do leu livro “Raiz do Orvalho”, em que ele diz:
“quando estou fraco, estou forte”. Eu disse: “Meu Deus do céu, esse verso
aparentemente simplório carrega no seu bojo uma riqueza de simbologia e
mitologia que comportam uma cosmologia inteira da civilização não apenas cristã
ocidental mas também oriental. Há toda uma tradição literária nisso. Nesse
pequeno verso você tem a sabedoria dos órficos que depois vai ser absorvida por
Sun Tzu e usado como um dos princípios filosóficos da sua “arte da guerra” e 500
anos depois vai ser usado por São Paulo, o apóstolo, na sua epístola aos coríntios,
incorporando isso no cristianismo”. É por isso que eu disse que Mia Couto é um
grande poeta, se calhar, eu diria, da estatura de um Rui de Noronha, malgrado
não ser um grande romancista porque nos seus romances ele não consegue abstraí-los
dessa sua veia poética muito forte e as palavras acabam adquirindo autonomia de
voo e vê-se isso por exemplo na Terra Sonâmbula cuja leitura não terminei e
noutros romances cuja leitura terminei como um rio chamado tempo e uma casa
chamada terra, a árvore do frangipani, entre outros e aquele seu livro de
contos, o fio das missangas. Aliás, no fio das missangas há um conto em que Mia
Couto diz: “o sol andava descalço pela planície”. Ora, é uma frase muito
bonita, mas isso já não é propriamente literal, literário, isso é mitopoético.
ESCRITO POR|XADREQUE SOUSA|shathreksousa@gmail.com
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