Para você tomar consciência da sua
consciência…, saber quem é você de verdade, você deve voltar-se para dentro de
si mesmo, …num combate mortal de auto-desmascaramento contínuo até que a sua
verdade mais substantiva apareça e você
consiga demarcar, de forma nítida, a fronteira entre o seu eu e a sua
circunstância.
Passamos
o dia todo falando com todo mundo e nunca paramos para falar connosco mesmos, o
que, já em si, é indício de que conhecemos muito mal a nós mesmos e que a nossa
vivência inteira é uma macaqueação, um plágio de outras vidas como diria Óscar
Wilde, o que faz da nossa vida, em síntese, não uma vida mas, sim, uma
caricatura grosseira da verdadeira medida da alma humana, a qual é a eternidade.
Leibniz
disse que a diferença entre o homem e o animal é que enquanto o animal tem
consciência, o homem tem autoconsciência. Como disse Olavo de Carvalho, “consciência
é saber que sabe e autoconsciência é saber que sabe que sabe” (sic), i.e, autoconsciência
é uma tomada de consciência da própria consciência pelo homem.
Para
você tomar consciência da sua consciência, ou seja, tomar consciência de si
mesmo, saber quem é você de verdade, você deve voltar-se para dentro de si
mesmo, para a sua identidade espiritual, e fazer para si mesmo aquela famosa
pergunta daquele místico hindu, o Ramana Maharshi: “Ko’ham?”, i.e., “quem sou
eu?”.
Esse diálogo
interior consigo mesmo é o que se chama pensar como disse Hannah Arendt que
desde Sócrates até Platão, pensar significava travar um diálogo silencioso
consigo mesmo.
Um
dialogo é, no final das contas, o que os escolásticos chamavam de disputatio mas, nós já vemos isso nos
diálogos de Platão, não nessa escala, evidentemente, de um diálogo voltado para
a interioridade do indivíduo mas voltado de um indivíduo para o outro em torno
de um certo assunto, mas, em síntese, é o mesmo exercício que tem que ser feito
por cada um de nós na escala particular ou individual.
Um diálogo
consigo mesmo, uma disputatio
interior, só é possível ao ser humano porque a sua mente é dialéctica, i.e., o
ser humano raciocina por meio da confrontação dialéctica de hipóteses. Aliás,
para São Tomás de Aquino, raciocinar é exactamente isso, partir “de um
conhecimento para o conhecimento do desconhecido”. De modo que, ter ou seguir
uma única linha de raciocínio, já em si, pressupõe, no ser humano, uma
deficiência mental muito grave como amplamente provado pelo psicólogo israelita
Reuven Feuerestein.
Na
verdade, essa confrontação de hipóteses é a única possibilidade ao nosso
alcance para nos livrarmos do analfabetismo funcional e conseguirmos apreender
a relação que dá estrutura as diversas variáveis a nossa disposição sob a forma
de pontinhos atomísticos perdidos no universo.
Este
artigo leva o título de “confissão”, o que não pode deixar de nos trazer a memória
a obra maior de Sto. Agostinho, a saber: “As confissões”. Num outro artigo, eu
já havia escrito que, infelizmente, muitas pessoas quando lêem aquela magnífica
obra de Agostinho, lêem-na simplesmente como um registo biográfico interior de
Agostinho. Ora, por um lado, a obra é isso mesmo, mas ela não é apenas isso,
ela é também uma metodologia inteira sobre o caminho, o trabalho preparatório
ou ainda a vivência interior que é preciso ter para se ser um filósofo, um
amante da sabedoria e não apenas um diletante.
Um
diletante, como disse, Ortega y Gasset, é apenas aquele indivíduo que está se
divertindo com a filosofia enquanto um filósofo de verdade é aquele para o qual
a filosofia alcança, para usar a expressão de Viktor Frankl, a dimensão de um
“sentido de vida” para ele. Deste modo, o repertório de questões que
verdadeiramente lhe interessam não vem dado pronto num programa de curso
universitário de filosofia como idealismo versus
realismo, racionalismo versus
empirismo, etc., mas questões que verdadeiramente pesam na sua alma.
Um
exemplo para o que estou dizendo é o do Sócrates que, tendo sido condenado a
morte, ele está dialogando com seus discípulos, no diálogo Fédon, não a
respeito das questões gerais da filosofia como determinismo versus livre-arbítrio. Isso seria
diletantismo e Sócrates sabia disso e, por isso mesmo, naquela ocasião, o seu diálogo
é sobre um drama real que ele estava vivendo naquele momento que era a morte, a
qual ele havia sido sentenciado, alegadamente por ter pervertido a juventude.
Isso
não significa que as questões gerais da filosofia, considerada desde a
perspectiva das questões que se cristalizaram como as “fundamentais” ao longo
do processo da sua evolução histórica devem ser ignoradas. De modo algum. Mas
dominar esse repertório de questões não faz de você um filósofo. Pode fazer de
você um erudito, mas não um indivíduo que ama a sabedoria e por amá-la busca-a.
Do
domínio do repertório geral das questões filosóficas até o indivíduo ser um
filósofo há um caminho enorme que é preciso percorrer, ou seja, depois de
dominar as questões filosóficas gerais, você tem que fazer aquilo que disse Mallarmé,
a saber: “dar um sentido mais puro as palavras da tribo” (sic). Quer dizer, a
tribo dos filósofos já está falando, mas você, recua desde esse repertorio das
questões gerais da filosofia até as suas percepções reais e autênticas, amoldando
essas questões filosóficas gerais às suas necessidades expressivas individuais
porque a filosofia, no final das contas, é um produto individual e não
colectivo.
Mas
para você chegar ate esse ponto, você tem que mergulhar profundamente para
dentro da sua alma como fez Sto. Agostinho, num combate mortal de auto-desmascaramento
contínuo até que a sua verdade mais substantiva apareça e você consiga demarcar
de forma nítida a fronteira entre o seu eu e a sua circunstância biológica,
psicológica, histórica, económica, social, cultural, etc.
É
claro que Ortega y Gasset, quando diz: “eu sou eu e a minha circunstância”, ele
nega essa separação, essa distinção entre o nosso eu individual e a nossa
circunstância que seria uma espécie não de um eu cogito, um eu pensante como em
Descartes mas um eu temporal, circunscrito a uma determinada realidade
geográfica e que é um meio de acção sem ser o agente dessa acção.
Porque,
vejamos, em que sentido é que você é a sua circunstância? Não pode ser no
sentido em que você é você mesmo. Mas no sentido em que você é para os outros,
para a natureza em torno. Portanto, temos aqui um eu em si mesmo e um eu nos
outros eus que lhe servem de superfície de contraste e que permitem que esse
primeiro eu se reconheça na realidade.
Voltando
a questão da confissão, ela significa contar a nossa vida, narrar a nossa
biografia interior. Quando contamos para os outros, geralmente, a confissão
acaba se tornando numa espécie de meia confissão e um exercício pecaminoso de
auto-lisonjeamento. Na verdade, a confissão só alcança seu verdadeiro sentido e
propósito quando ela é feita sob o olhar omnisciente de um juíz ao qual você não pode
enganar porque ele sabe tudo que você fez e lhe conhece mais do que você se
conhece a si mesmo e esse juiz é o próprio Deus que para Aristóteles é o
fundamento mesmo da realidade, o primeiro motor que põe em movimento todos os
outros motores da realidade mas não no sentido físico da coisa mas, sim, no da
filosofia primeira, i.e., da metafísica mesmo.
Sto.
Agostinho diz que “Deus habita a interioridade da alma humana”. Só isso já é
suficiente para evidenciar ou esclarecer que somente narrando a nossa história
para nós mesmos podemos alcançar o verdadeiro sentido da confissão e seu
verdadeiro propósito que é romper a parede de separação entre nós e o
fundamento mesmo da realidade e nos devolver existencialmente a esse mesmo
fundamento da realidade. Mas isso acontece quando a confissão é feita como um
esforço ascético de aprofundamento da autoconsciência e não enquanto
cumprimento rotineiro de um dever religioso.
Confissão,
sem um exame de consciência, não pode nos devolver a realidade, sob hipótese
nenhuma, o que significa que continuaremos naquela segunda realidade feita só
de palavras de que falaram Robert Musil e Eric Voeglin. Então, você vai falar,
falar e falar, mas sem aquele feed back
indispensável que traz a explicação para todas as suas dúvidas, para todas as
suas perguntas.
Na
verdade, não é que você terá cognitivamente, intelectualmente, a resposta para
todas as suas perguntas. Ao invés disso, essa resposta lhe é dada
existencialmente como uma espécie de iluminação divina ou um sopro pneumático
de ordem divina que acalma a sua alma, aplacando todas as suas dúvidas.
Mas
mesmo quando você tem esse vislumbre da verdade eterna, suprema e universal,
você vai precisar de mil vidas para poder explicar o vislumbre que você
teve. Como ninguém tem mil vidas, a primeira elaboração cognitiva ou intelectual
possível é, evidentemente, sob símbolos artísticos. É, por isso, que os
escritos dos profetas, dos místicos, em geral, aparecem sob forma compactada da
linguagem mitopoética porque não há tempo.
ESCRITO
POR|XADREQUE SOUSA|shatreksousa@gmail.com.
Nenhum comentário:
Postar um comentário