sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

Escolas da Filosofia africana: Mbiti e Hountondji

Resultado de imagem para africa
Ao contrário do que John Mbiti pensa, não há nenhum trabalho propriamente filosófico em coleccionar, interpretar e difundir os provérbios, contos folclóricos, e mitos africanos. Isso é, apenas, trabalho de arquivista e não especulação filosófica sois disant, ao menos que se procure conciliar analiticamente esses provérbios, contos e mitos com Platão e Aristóteles como fez São Tomás de Aquino, na idade média, ao procurar conciliar a doutrina cristã com a filosofia de Aristóteles.

Vasculhando num caixote cheio de papéis, livros e cadernos dos tempos do ensino básico e médio, encontrei, num dos meus cadernos da disciplina de filosofia, o texto abaixo, o qual comento neste artigo de blog em azul.

“Podem considerar-se filosóficos os provérbios, os contos tradicionais, dizeres dos sábios africanos, entre outros?
E qual é a função dos filósofos educados profissionalmente perante estes dizeres e provérbios tradicionais?”

A expressão “filósofos educados profissionalmente” chega a ser uma figura de linguagem, pelo simples facto de que a filosofia não corresponde a nenhuma actividade profissional mas a mera busca da sabedoria motivada apenas pelo amor a essa mesma sabedoria que se apresentou à Boécio, o pai da filosofia escolástica, na prisão, na figura de uma mulher muito formosa.

Qualquer profissão pressupõe a prática e aí temos o pragma, enquanto a filosofia é uma contemplatio, uma contemplação amorosa da sabedoria.

Quando um individuo se põe a filosofar por dinheiro, é porque ele nunca foi um filósofo de verdade, mas apenas um sofista redivivo. Sócrates não filosofou por dinheiro mas para encontrar aquilo que o pai da logo-terapia, o psicólogo judeu Viktor Frankl chamou de “sentido da vida”. São de Sócrates as palavras: “uma vida sem ser examinada, não vale a pena ser vivida”.

Como é que você iria fiscalizar o que Sócrates fazia? Como é que você iria remunerar Sócrates? Sócrates não deu aulas em nenhuma escola. Sócrates não escreveu nenhum livro. Tudo que sabemos dele foi pela pena de Platão. Sócrates simplesmente conversava com as pessoas.

Essa fronteira entre filósofos profissionais e filósofos não profissionais é apenas uma ilusão. Ela não existe. Só há filósofos verdadeiros e pseudo-filósofos e ponto final. By the way, muitos dos filósofos profissionais sois disant  não passam de pseudo-filósofos porque quando um individuo começa a filosofar por dinheiro, seu objectivo deixou de ser a busca desinteressada da sabedoria abstracta e universal com vista a orientação das suas acções particulares e concretas no mundo real e o dinheiro tornou-se para ele aquilo que disse George Simmel, “a fronteira do interesse”.

O filósofo colombiano Nicolas Gomes Dávila estava coberto de razão quando disse que “quanto mais alta é uma actividade, mais ridícula é a pretensão de você julgá-la desde fora”. É por isso que neste país, onde os diplomas universitários são o substitutivo do amor real e profundo pela sabedoria, qualquer individuo que se apresente como filósofo pelo simples facto de ter passado pela universidade é incensado como a reencarnação melhorada de Platão e Aristóteles.

Não entendo como é que num país onde medram e abundam pessoas que têm uma veneração profunda a mentira ao mesmo tempo que têm um amor enorme pelo pseudo-conhecimento possa surgir um filósofo, de vez que o amor a mentira e ao pseudo-conhecimento consubstanciam uma flagrante violação do primeiro mandamento divino: “Amarás ao SENHOR teu Deus acima de todas as coisas”. Ora, acreditar nisso é abusar da quota de ingenuidade permitida a um ser racional, é ser pueril para lá das medidas.

“A sabedoria”, dizia Da Vinci, “é uma mercadoria que Deus vende aos homens mediante um preço chamado esforço”. Esforço aqui é ascetismo e isso implica perder a ilusão acerca desta vida e tomar como espelho não o que o mundo diz, i.e., a mídia, não o que a carne, aquilo que lhe afecta sensorialmente, diz, e nem o que o diabo, a negação do “uno, bonum e veru” de Duns Escoto diz mas o que Deus, o fundamento mesmo da realidade, como diz Aristóteles, lhe infunde desde o fundo da sua autoconsciência e aí sim, você vai chegar a medida do homem que tem profundidade, a qual é a eternidade. Sem isso, pensar em filosofar é fazer buraco na água, é acreditar que galinha mia e que gato bota ovo. É uma impossibilidade metafísica pura e simples.

Entre os filósofos africanos de hoje parece haver duas escolas básicas de pensamento acerca deste tema: a primeira representada por John Mbiti, sustenta que a filosofia africana é um especulativo que subjaz nos provérbios, nas máximas, nos costumes, etc., que os africanos de hoje herdaram dos seus antepassados através da tradição oral.

Isso não pode ser porque todos os provérbios e máximas africanas são do tipo mito-poético e não filosófico. Isso não acontece apenas nesta parte do mundo, antes pelo contrário, se trata de um fenómeno universal que pode ser encontrado em qualquer cultura ou em qualquer civilização que já tenha existido.

A máxima de Tales de Mileto de que tudo vem da água é disso um exemplo clássico. Não há nada de filosófico nisso, assim como não há nada de filosófico nos textos de Homero porque toda tentativa de oferecer uma explicação unificada sobre todas as coisas, como por exemplo, sobre a origem do universo, é de natureza mito-poética como a narrativa mosaica do génese, a teoria da evolução de Darwin e assim por diante.

Malgrado a criação da palavra filosofia ter sido atribuída a Pitágoras, a filosofia só se tornou actividade auto-consciente com Sócrates e isso esclarece para nós por quê é que o filósofo Olavo de Carvalho chama a filosofia de “o projecto socrático”.

Mário Ferreira dos Santos diz que o que distingue a filosofia de todas as demais actividades que a precederam é a demonstração. Agora, eu quero saber como é que os africanos faziam a demonstração dos conteúdos expressos nos seus provérbios, máximas, costumes, etc., de vez que eles não tinham as ferramentas para isso porque a ciência da dialética e da lógica foi toda ela inventada pelos gregos. Pelos gregos? Mais ou menos porque Aristóteles, o príncipe dos filósofos, era macedónio de Estagira.

Nem toda especulação é filosófica. Ela só se torna filosófica se for uma actividade auto-consciente, uma tradição inaugurada por Sócrates, ou seja, se o individuo realmente está fazendo dessa actividade um esforço consciente da busca da unidade do saber na unidade da consciência e vice-versa.

Portanto, segundo esta escola, a função do filósofo africano, no que se refere à filosofia africana é a de coleccionar, interpretar e difundir os provérbios, contos folclóricos, mitos, assim como outro material deste tipo.

Ao contrário do que John Mbiti pensa, não há nenhum trabalho propriamente filosófico em coleccionar, interpretar e difundir os provérbios, contos folclóricos, mitos, etc. Isso é apenas trabalho de compilador, de arquivista e não especulação filosófica sois disant.

Se, ao invés disso, se procurasse, por exemplo, conciliar analiticamente esses provérbios, contos, mitos, etc., com Platão e Aristóteles como fez Sto. Agostinho ao tentar conciliar a doutrina cristã com Platão ou como o fez Sto. Tomás de Aquino, na idade média, ao procurar conciliar a doutrina cristã com Aristóteles, pelo menos, haveria nisso algum trabalho filosófico, caso contrário é trabalho de arquivista tout court.

A segunda escola, representada por Paulin Hountondji sustenta que, hoje em dia, a filosofia africana ocupa-se também dos desenvolvimentos modernos no conhecimento e na reflexão. Defende que a filosofia africana é o resultado do pensamento abstracto de pensadores africanos, tanto tradicionais como modernos.

Hountondji não nega a perspectiva da escola de Mbiti, ele simplesmente acrescenta algo num esforço de complementá-la e superá-la sem, no entanto, consegui-lo porque como disse Nietzsche: “você só supera o que você consegue substituir” e, acontece que a escola mbitiana, digamos assim, não subsititui e, portanto, não supera a primeira, simplesmente a reforça.

No final das contas, a escola de Hountondji acaba sendo uma espécie de síntese do que ela chama de tradicional e de moderno e suponho que quando essa escola fala do tradicional se refere a toda tradição oral dos provérbios, máximas e costumes da escola de Mbiti e o moderno suponho que se trate de toda especulação a volta do pan-africanismo, negritude e assim por diante.

Pois bem! O que é tradição? A palavra tradição vem do latim traditio que significa trazer e dentro do contexto da filosofia tradicionalista que tem como representantes Rama Coomaraswamy, René Guenon, Fritjof Schuon, Titus Buckardt, Seyyed Hosein Nasr, este último, a define como sendo um esforço de interpretação do mundo com base em mitos e símbolos.

Na verdade, o esforço dessa escola filosófica tradicionalista, dita perene, é de carácter religioso mas ela se difere do sentido escolástico da coisa. Por outras palavras, a escola tradicionalista procura conferir uma elaboração filosófica a narrativa mítica e poética hindu e islâmica, ao passo que a escolástica procurou fazer isso com a doutrina cristã. By the way, a escolástica ofereceu ao ocidente toda a base da sua civilização. É claro que antes disso, Fílon de Alexandria já havia feito isso com as obras de Moisés (o Pentateuco) e com as dos profetas, esforço que vai ser prosseguido mais tarde na idade média com um outro filósofo e médico judeu, o Moisés Maimónides.

Portanto, não se trata de uma compilação de contos, poesias, etc. míticos e simbólicos como propõem a escola de John Mbiti mas sim de dar um cunho filosófico a esses contos, poesia e, assim por diante.

***

Ps: Os africanos, de um modo geral e, os moçambicanos, de um modo particular, fazem uma ideia totalmente errada do que seja filosofia.

O primeiro erro é confundir filosofia com lógica. Ora, a logica é simplesmente uma ante-sala para a filosofia. Você pode dominar toda a lógica aristotélica de frente para trás e de trás para frente e, ainda assim, não ser um filósofo mas apenas um lógico e, as vezes, nem isso, assim como o domínio da gramática não faz de você um escritor, um poeta.

O que distingue o filósofo dos demais pensadores, digamos assim, que, na verdade, não passam de poetas o que não é mau, é que o filósofo tem uma mente ordenadora, enquanto um pensador poético não o tem.

Um exemplo:

Nietzsche foi um grande pensador mas ele não foi um filósofo, malgrado ter tido, às vezes, intuições brilhantes. Nietzsche se contradizia o tempo todo. Ele não tinha aquela unidade de consciência indispensável a todo filósofo que só se consegue com um recuo constante as suas percepções reais por via de um contínuo exame de consciência porque Nietzsche não tinha uma mente ordenadora.

Infelizmente, muitas pessoas lêem “as confissões” de Sto. Agostinho apenas como uma biografia interior desse gigante da patrística ou da patrologia sem atinar com o óbvio de que aquele clássico é mais do que isso. Ele é uma metodologia inteira do trabalho interior que é preciso para se fazer um filósofo. Nietzsche não tinha isso. É por isso que Otto Maria Carpeaux diz que Nietzsche era um poeta. Seu livro mais célebre, “assim falava Zaratustra” prova isso em toda linha.

Mas Nietzsche tinha uma desculpa. Tinha entre aspas. Ele padecia de sífilis. Ele tinha umas dores de cabeça terríveis e ele só conseguia escrever no intervalo daquelas dores atrozes, mas sempre de forma compactada, porque não havia tempo. E o homem acabou morrendo louco. Porém, depois que descobriu-se uma coisa chamada penicilina, ninguém tem o direito de ser um Nietzsche.

Outro erro com que tenho me confrontado frequentemente é chamar a qualquer indivíduo que tenha tirado um diploma de filosofia de filósofo. Já expus nas linhas acima o que significa ser um filósofo e não me vou repetir. Todavia, quero fazer uma pequena observação.

Aristóteles disse que a filosofia começa com a aquisição das ideias dos sábios. Só o estudo de Platão e Aristóteles já leva uns 5 anos mais o estudo de toda escolástica, da escola tradicionalista, dos neo-escolásticos sem contar com a leitura dos pré-socráticos e toda filosofia moderna que começa com Descartes, isso dá mais ou menos uns 30 anos, o que, por si só, já deita por terra toda e qualquer pretensão soberba de chamar a um indivíduo que acabou de tirar seu diploma de filosofia de filósofo.

É por isso que Olavo de Carvalho diz que “a filosofia é coisa para homem maduro ou para velhos”. É claro que houve o caso de Schelling que teve na juventude umas intuições admiráveis e se pôs a filosofar mas, quando tentou fazer a segunda vez, não conseguiu, tentou a terceira e só escreveu asneira. Ele só veio a acertar o tom na quinta tentativa, já velho.

Uma excepção absolutamente atípica é São Tomás de Aquino que começou a filosofar aos 30 anos. Toda essa aquisição das ideias dos sábios que os outros filósofos fazem em 30 anos, ele fez em 10 anos. Mas isso é uma rara excepção.

Muitos pensam que tenho sido um misto de exagero e de malícia quando digo que em Moçambique não há filósofos mas apenas estudantes de filosofia e professores de filosofia. Um filósofo não estuda a filosofia, ele estuda a realidade tal como disse Eric Voeglin, o filósofo político mais importante da segunda metade do século XX, aos seus alunos: “não estudem a filosofia de Eric Voeglin, estudem a realidade”. Sócrates estudou a realidade. Platão e Aristóteles estudaram a realidade, quer sob a forma de política, ética, etc. 

Infelizmente, hoje, até temos especialistas em filosofia de Aristóteles, especialistas em filosofia de Espinoza e, assim por diante.  

É caso para dizer que Edmund Husserl estava coberto de razão quando disse que com a entrada da modernidade a filosofia caiu para um nível pueril, aliás, o que esses camaradas têm feito hoje em dia nem se pode chamar de filosofia, tal é o abismo que os separa das especulações originárias empreendidas por Platão e Aristóteles e seus discípulos mais capazes que a meu ver são os seguintes: Sto. Agostinho, São Tomás de Aquino, John Duns Escoto, Suarez, Edmund Husserl, Mário Ferreira dos Santos, Xavier Zubiri e George Simmel. É claro que não nesta ordem.

Pode ser que eu me tenha esquecido de um e outro mas, nesta lista, eu não colocaria os filósofos mais incensados pela intelligentsia académica e pelo beautifull people da mídia high brow como Descartes, Kant, Hegel, Marx, Nietzsche, Foucault, Heidegger ou José Ortega y Gasset, a despeito da minha simpatia para com este último e para com Descartes.

ESCRITO POR|XADREQUE SOUSA|shathreksousa@gmail.com

Um comentário: