Ao contrário do que
John Mbiti pensa, não há nenhum trabalho propriamente filosófico em
coleccionar, interpretar e difundir os provérbios, contos folclóricos, e mitos
africanos. Isso é, apenas, trabalho de arquivista e não especulação filosófica
sois disant, ao menos que se procure conciliar analiticamente esses provérbios,
contos e mitos com Platão e Aristóteles como fez São Tomás de Aquino, na idade
média, ao procurar conciliar a doutrina cristã com a filosofia de Aristóteles.
Vasculhando num caixote cheio de papéis, livros e cadernos
dos tempos do ensino básico e médio, encontrei, num dos meus cadernos da
disciplina de filosofia, o texto abaixo, o qual comento neste artigo de blog em azul.
“Podem considerar-se
filosóficos os provérbios, os contos tradicionais, dizeres dos sábios
africanos, entre outros?
E qual é a função dos
filósofos educados profissionalmente perante estes dizeres e provérbios
tradicionais?”
A expressão “filósofos educados
profissionalmente” chega a ser uma figura de linguagem, pelo simples facto de
que a filosofia não corresponde a nenhuma actividade profissional mas a mera
busca da sabedoria motivada apenas pelo amor a essa mesma sabedoria que se
apresentou à Boécio, o pai da filosofia escolástica, na prisão, na figura de
uma mulher muito formosa.
Qualquer profissão pressupõe a prática e aí
temos o pragma, enquanto a filosofia é uma contemplatio,
uma contemplação amorosa da sabedoria.
Quando um individuo se põe a filosofar por
dinheiro, é porque ele nunca foi um filósofo de verdade, mas apenas um sofista
redivivo. Sócrates não filosofou por dinheiro mas para encontrar aquilo que o
pai da logo-terapia, o psicólogo judeu Viktor Frankl chamou de “sentido da
vida”. São de Sócrates as palavras: “uma vida sem ser examinada, não vale a
pena ser vivida”.
Como é que você iria fiscalizar o que
Sócrates fazia? Como é que você iria remunerar Sócrates? Sócrates não deu aulas
em nenhuma escola. Sócrates não escreveu nenhum livro. Tudo que sabemos dele foi
pela pena de Platão. Sócrates simplesmente conversava com as pessoas.
Essa fronteira entre filósofos profissionais
e filósofos não profissionais é apenas uma ilusão. Ela não existe. Só há
filósofos verdadeiros e pseudo-filósofos e ponto final. By the way, muitos dos filósofos profissionais sois disant não passam de pseudo-filósofos
porque quando um individuo começa a filosofar por dinheiro, seu objectivo deixou
de ser a busca desinteressada da sabedoria abstracta e universal com vista a
orientação das suas acções particulares e concretas no mundo real e o dinheiro
tornou-se para ele aquilo que disse George Simmel, “a fronteira do interesse”.
O filósofo colombiano Nicolas Gomes Dávila
estava coberto de razão quando disse que “quanto mais alta é uma actividade,
mais ridícula é a pretensão de você julgá-la desde fora”. É por isso que neste
país, onde os diplomas universitários são o substitutivo do amor real e
profundo pela sabedoria, qualquer individuo que se apresente como filósofo pelo
simples facto de ter passado pela universidade é incensado como a reencarnação
melhorada de Platão e Aristóteles.
Não entendo como é que num país onde medram
e abundam pessoas que têm uma veneração profunda a mentira ao mesmo tempo que
têm um amor enorme pelo pseudo-conhecimento possa surgir um filósofo, de vez
que o amor a mentira e ao pseudo-conhecimento consubstanciam uma flagrante violação
do primeiro mandamento divino: “Amarás ao SENHOR teu Deus acima de todas as
coisas”. Ora, acreditar nisso é abusar da quota de ingenuidade permitida a um
ser racional, é ser pueril para lá das medidas.
“A sabedoria”, dizia Da Vinci, “é uma
mercadoria que Deus vende aos homens mediante um preço chamado esforço”.
Esforço aqui é ascetismo e isso implica perder a ilusão acerca desta vida e tomar
como espelho não o que o mundo diz, i.e., a mídia, não o que a carne, aquilo
que lhe afecta sensorialmente, diz, e nem o que o diabo, a negação do “uno,
bonum e veru” de Duns Escoto diz mas o que Deus, o fundamento mesmo da
realidade, como diz Aristóteles, lhe infunde desde o fundo da sua
autoconsciência e aí sim, você vai chegar a medida do homem que tem
profundidade, a qual é a eternidade. Sem isso, pensar em filosofar é fazer
buraco na água, é acreditar que galinha mia e que gato bota ovo. É uma impossibilidade
metafísica pura e simples.
Entre os filósofos
africanos de hoje parece haver duas escolas básicas de pensamento acerca deste
tema: a primeira representada por John Mbiti, sustenta que a filosofia africana
é um especulativo que subjaz nos provérbios, nas máximas, nos costumes, etc.,
que os africanos de hoje herdaram dos seus antepassados através da tradição
oral.
Isso não pode ser porque todos os provérbios
e máximas africanas são do tipo mito-poético e não filosófico. Isso não
acontece apenas nesta parte do mundo, antes pelo contrário, se trata de um
fenómeno universal que pode ser encontrado em qualquer cultura ou em qualquer
civilização que já tenha existido.
A máxima de Tales de Mileto de que tudo vem da
água é disso um exemplo clássico. Não há nada de filosófico nisso, assim como
não há nada de filosófico nos textos de Homero porque toda tentativa de
oferecer uma explicação unificada sobre todas as coisas, como por exemplo,
sobre a origem do universo, é de natureza mito-poética como a narrativa mosaica
do génese, a teoria da evolução de Darwin e assim por diante.
Malgrado a criação da palavra filosofia ter
sido atribuída a Pitágoras, a filosofia só se tornou actividade auto-consciente
com Sócrates e isso esclarece para nós por quê é que o filósofo Olavo de
Carvalho chama a filosofia de “o projecto socrático”.
Mário Ferreira dos Santos diz que o que
distingue a filosofia de todas as demais actividades que a precederam é a
demonstração. Agora, eu quero saber como é que os africanos faziam a demonstração
dos conteúdos expressos nos seus provérbios, máximas, costumes, etc., de vez
que eles não tinham as ferramentas para isso porque a ciência da dialética e da
lógica foi toda ela inventada pelos gregos. Pelos gregos? Mais ou menos porque
Aristóteles, o príncipe dos filósofos, era macedónio de Estagira.
Nem toda especulação é filosófica. Ela só se
torna filosófica se for uma actividade auto-consciente, uma tradição inaugurada
por Sócrates, ou seja, se o individuo realmente está fazendo dessa actividade
um esforço consciente da busca da unidade do saber na unidade da consciência e vice-versa.
Portanto, segundo esta
escola, a função do filósofo africano, no que se refere à filosofia africana é
a de coleccionar, interpretar e difundir os provérbios, contos folclóricos,
mitos, assim como outro material deste tipo.
Ao contrário do que John Mbiti pensa, não há
nenhum trabalho propriamente filosófico em coleccionar, interpretar e difundir
os provérbios, contos folclóricos, mitos, etc. Isso é apenas trabalho de
compilador, de arquivista e não especulação filosófica sois disant.
Se, ao invés disso, se procurasse, por
exemplo, conciliar analiticamente esses provérbios, contos, mitos, etc., com
Platão e Aristóteles como fez Sto. Agostinho ao tentar conciliar a doutrina
cristã com Platão ou como o fez Sto. Tomás de Aquino, na idade média, ao
procurar conciliar a doutrina cristã com Aristóteles, pelo menos, haveria nisso
algum trabalho filosófico, caso contrário é trabalho de arquivista tout court.
A segunda escola,
representada por Paulin Hountondji sustenta que, hoje em dia, a filosofia
africana ocupa-se também dos desenvolvimentos modernos no conhecimento e na
reflexão. Defende que a filosofia africana é o resultado do pensamento
abstracto de pensadores africanos, tanto tradicionais como modernos.
Hountondji não nega a perspectiva da escola
de Mbiti, ele simplesmente acrescenta algo num esforço de complementá-la e
superá-la sem, no entanto, consegui-lo porque como disse Nietzsche: “você só
supera o que você consegue substituir” e, acontece que a escola mbitiana,
digamos assim, não subsititui e, portanto, não supera a primeira, simplesmente
a reforça.
No final das contas, a escola de Hountondji
acaba sendo uma espécie de síntese do que ela chama de tradicional e de moderno
e suponho que quando essa escola fala do tradicional se refere a toda tradição
oral dos provérbios, máximas e costumes da escola de Mbiti e o moderno suponho
que se trate de toda especulação a volta do pan-africanismo, negritude e assim
por diante.
Pois bem! O que é tradição? A palavra
tradição vem do latim traditio que
significa trazer e dentro do contexto da filosofia tradicionalista que tem como
representantes Rama Coomaraswamy, René Guenon, Fritjof Schuon, Titus Buckardt,
Seyyed Hosein Nasr, este último, a define como sendo um esforço de
interpretação do mundo com base em mitos e símbolos.
Na verdade, o esforço dessa escola
filosófica tradicionalista, dita perene, é de carácter religioso mas ela se
difere do sentido escolástico da coisa. Por outras palavras, a escola
tradicionalista procura conferir uma elaboração filosófica a narrativa mítica e
poética hindu e islâmica, ao passo que a escolástica procurou fazer isso com a
doutrina cristã. By the way, a
escolástica ofereceu ao ocidente toda a base da sua civilização. É claro que
antes disso, Fílon de Alexandria já havia feito isso com as obras de Moisés (o
Pentateuco) e com as dos profetas, esforço que vai ser prosseguido mais tarde
na idade média com um outro filósofo e médico judeu, o Moisés Maimónides.
Portanto, não se trata de uma compilação de
contos, poesias, etc. míticos e simbólicos como propõem a escola de John Mbiti
mas sim de dar um cunho filosófico a esses contos, poesia e, assim por diante.
***
Ps: Os africanos, de um modo geral e, os
moçambicanos, de um modo particular, fazem uma ideia totalmente errada do que
seja filosofia.
O primeiro erro é confundir filosofia com
lógica. Ora, a logica é simplesmente uma ante-sala para a filosofia. Você pode dominar
toda a lógica aristotélica de frente para trás e de trás para frente e, ainda
assim, não ser um filósofo mas apenas um lógico e, as vezes, nem isso, assim
como o domínio da gramática não faz de você um escritor, um poeta.
O que distingue o filósofo dos demais
pensadores, digamos assim, que, na verdade, não passam de poetas o que não é
mau, é que o filósofo tem uma mente ordenadora, enquanto um pensador poético
não o tem.
Um exemplo:
Nietzsche foi um grande pensador mas ele não
foi um filósofo, malgrado ter tido, às vezes, intuições brilhantes. Nietzsche
se contradizia o tempo todo. Ele não tinha aquela unidade de consciência
indispensável a todo filósofo que só se consegue com um recuo constante as suas
percepções reais por via de um contínuo exame de consciência porque Nietzsche
não tinha uma mente ordenadora.
Infelizmente, muitas pessoas lêem “as
confissões” de Sto. Agostinho apenas como uma biografia interior desse gigante
da patrística ou da patrologia sem atinar com o óbvio de que aquele clássico é mais
do que isso. Ele é uma metodologia inteira do trabalho interior que é preciso para
se fazer um filósofo. Nietzsche não tinha isso. É por isso que Otto Maria
Carpeaux diz que Nietzsche era um poeta. Seu livro mais célebre, “assim falava
Zaratustra” prova isso em toda linha.
Mas Nietzsche tinha uma desculpa. Tinha entre aspas. Ele
padecia de sífilis. Ele tinha umas dores de cabeça terríveis e ele só conseguia
escrever no intervalo daquelas dores atrozes, mas sempre de forma compactada, porque
não havia tempo. E o homem acabou morrendo louco. Porém, depois que
descobriu-se uma coisa chamada penicilina, ninguém tem o direito de ser um
Nietzsche.
Outro erro com que tenho me confrontado
frequentemente é chamar a qualquer indivíduo que tenha tirado um diploma de
filosofia de filósofo. Já expus nas linhas acima o que significa ser um filósofo
e não me vou repetir. Todavia, quero fazer uma pequena observação.
Aristóteles disse que a filosofia começa com
a aquisição das ideias dos sábios. Só o estudo de Platão e Aristóteles já leva
uns 5 anos mais o estudo de toda escolástica, da escola tradicionalista, dos neo-escolásticos
sem contar com a leitura dos pré-socráticos e toda filosofia moderna que começa
com Descartes, isso dá mais ou menos uns 30 anos, o que, por si só, já deita
por terra toda e qualquer pretensão soberba de chamar a um indivíduo que acabou
de tirar seu diploma de filosofia de filósofo.
É por isso que Olavo de Carvalho diz que “a
filosofia é coisa para homem maduro ou para velhos”. É claro que houve o caso
de Schelling que teve na juventude umas intuições admiráveis e se pôs a
filosofar mas, quando tentou fazer a segunda vez, não conseguiu, tentou a
terceira e só escreveu asneira. Ele só veio a acertar o tom na quinta
tentativa, já velho.
Uma excepção absolutamente atípica é São
Tomás de Aquino que começou a filosofar aos 30 anos. Toda essa aquisição das
ideias dos sábios que os outros filósofos fazem em 30 anos, ele fez em 10 anos.
Mas isso é uma rara excepção.
Muitos pensam que tenho sido um misto de exagero
e de malícia quando digo que em Moçambique não há filósofos mas apenas
estudantes de filosofia e professores de filosofia. Um filósofo não estuda a
filosofia, ele estuda a realidade tal como disse Eric Voeglin, o filósofo político
mais importante da segunda metade do século XX, aos seus alunos: “não estudem a
filosofia de Eric Voeglin, estudem a realidade”. Sócrates estudou a realidade. Platão
e Aristóteles estudaram a realidade, quer sob a forma de política, ética, etc.
Infelizmente,
hoje, até temos especialistas em filosofia de Aristóteles, especialistas em
filosofia de Espinoza e, assim por diante.
É caso para dizer que Edmund Husserl estava
coberto de razão quando disse que com a entrada da modernidade a filosofia caiu
para um nível pueril, aliás, o que esses camaradas têm feito hoje em dia nem se
pode chamar de filosofia, tal é o abismo que os separa das especulações
originárias empreendidas por Platão e Aristóteles e seus discípulos mais
capazes que a meu ver são os seguintes: Sto. Agostinho, São Tomás de Aquino,
John Duns Escoto, Suarez, Edmund Husserl, Mário Ferreira dos Santos, Xavier
Zubiri e George Simmel. É claro que não nesta ordem.
Pode ser que eu me tenha esquecido de um e
outro mas, nesta lista, eu não colocaria os filósofos mais incensados pela
intelligentsia académica e pelo beautifull
people da mídia high brow como Descartes,
Kant, Hegel, Marx, Nietzsche, Foucault, Heidegger ou José Ortega y Gasset, a
despeito da minha simpatia para com este último e para com Descartes.
ESCRITO POR|XADREQUE SOUSA|shathreksousa@gmail.com
Encontrei nestas páginas aquilo que procurei à anos.
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