Neguemos
ou aceitemos, não importa. O que aconteceu no Zimbabwe foi um golpe de estado.
Quando um presidente democraticamente eleito em sufrágio universal é destituído
por quem não tem legitimidade democrática por não ter sido eleito, estamos
perante um golpe de estado.
Quando os militares do Zimbabwe entraram
em cena prendendo alguns ministros, tomando de assalto a rádio e televisão públicas,
bem como colocando o presidente Mugabe sob custódia, alguns analistas de
política internacional apareceram na mídia a negar que o que estava acontecendo
se tratava de um golpe de Estado.
Quanta vassalagem!
Não é preciso ser um especialista em
relações internacionais para saber que, em democracia, quando um governante,
eleito em sufrágio universal, é destituído do seu cargo, não pelo povo que o
elegeu mas por qualquer outro meio anti-democrático, estamos, sim, perante um
golpe.
Infelizmente, em Moçambique nossos
analistas de política internacional não estudam a realidade mas sim teorias
doutrinas acerca da realidade, razão pela qual já não são capazes de reconhecer
algo tão elementar como um golpe de estado mesmo diante dos seus olhos.
Num estado de direito-democrático,
somente o povo pode destituir o governante do seu posto sem que isso seja um
golpe porque em democracia o poder reside no povo. Em democracia, o povo é
representado pelo parlamento, quer o chamemos assembleia da república ou congresso.
Assim, somente o povo pode destituir legitimante o governante através do voto
directo ou através do parlamento que o representa.
Que o parlamento representa o povo não
há sempre um consenso. Eric Voeglin, na sua “Nova Ciência da Política”, diz que
o grande problema da política é o problema da representação. Representa o
parlamento os anseios do povo? Nem sempre. Sem dúvida alguma, muita das leis
que são aprovadas pelo parlamento se fossem submetidas a um plebiscito muito
provavelmente seriam reprovadas.
Sendo os parlamentares políticos
profissionais, só uma coisa lhes interessa, a saber: poder. E isso é assim
desde que Maquiavel escreveu o seu “príncipe” (1). Desde aquele momento, o fim
da política deixou de ser a busca do bem-comum para ser a busca do poder pelo
poder. Em todo o caso, diz-se ser o parlamento a “vox populi”.
No Zimbabwe, a iniciativa da derrubada
do Sr. Robert Gabriel Mugabe não veio do parlamento mas sim das forças armadas.
Não importa se depois o parlamento acabou anuindo a essa conspiração. O comando
das forças armadas não foi eleito pelo povo mas sim nomeado. Dessarte, quando
ele age sem a ordem do comandante em chefe que é o presidente da república, o
qual foi eleito, estamos, sem dúvida alguma, diante de um acto ilegítimo, de um
golpe.
Não quero com isso ser um paladino do
Mugabe. Uma coisa é o inferno económico, político e social ao alcance de todos
que Mugabe criou no Zimbabwe, outra coisa é a atitude dos militares. Não
importa aqui se os militares fizeram ou não o que é legítimo apesar de ilegal
porque antes de julgar, é preciso compreender e compreender não é emitir juízos
de valor mas sim rastrear as conexões ou implicações de sentido.
Agora, um dado curioso que ninguém quer
comentar é o motivo que os militares alegaram para fazer o golpe. Diz-se muito
por aí que o que esteve por detrás do golpe é que Mugabe tinha o plano de fazer
da sua esposa Grace Mugabe a sua sucessora. Porém, não é isso que os militares
alegaram. Eles alegaram que queriam salvar a revolução.
Isso é bastante interessante porque tudo
que Mugabe fez na sua porca vida foi em nome da revolução. Já demonstrei
centenas de vezes que todos esses partidos que resultaram dos ex-movimentos de
libertação são revolucionários e que não estão preparados para o normal rodízio
de poder que é uma das promessas da democracia.
Todo esse incidente faz-me lembrar a peça
de teatro do romancista Eugénio Corti “Processo e Morte de Stalin” em que os
companheiros de Stalin invadem o seu palácio com a resolução de matá-lo alegadamente
porque Stalin traiu o marxismo-leninismo. Então, depois de prender os
guarda-costas de Stalin, eles o encostam na parede e dizem que vão matá-lo. Aí,
Stalin diz: ok, companheiros! Tudo bem…Vocês podem me matar mas antes vocês vão
deixar-me explicar. Vocês vão fazer um processo”. E aí, ele começa a demonstrar
por A + B que tudo quanto ele fez foi em nome do marxismo-leninismo. Os
companheiros dizem: ‘Eh, você tem razão mas nós vamos te matar mesmo assim”.
É a mesma coisa que está acontecendo no
Zimbabwe. É a velha técnica de rotulação inversa de Lenine: “acuse-os do que
você fez e insulte-os do que você é”. Quem não conhece a história de Leon
Trotsky, Karl Radek, etc. É claro que se tratam de indivíduos psicopatas,
sanguinários, porém, essa ideia de que “o ladrão que rouba outro ladrão tem
direito a mil anos de perdão” só serve para legitimar o roubo da mesma elite
revolucionária de sempre que se limpa sistematicamente na sua sujeira. Como?
Fazendo mais uma vez o que Lenine disse: “fomentem a corrupção e denunciem-na”.
Notas:
(1)
“O príncipe” de Maquiavel é considerada
a obra fundadora do realismo político. Para outros, como O.d.Carvalho Maquiavel
não era um realista por diversas razões, sendo uma delas que as apostas
políticas de Maquiavel sempre deram erradas como no caso do Bórgias. Otto Maria
Carpeaux diz que essa obra de Maquiavel é um manual de política prática (cf.
História da Literatura Universal).
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